Paralelo 11: Cinta-largas foram massacrados com dinamite, tiros, brinquedos envenenados e escravizados
Esta semana o Ministério Público Federal em Rondônia pediu a reparação histórica ao povo Cinta-Larga pelo massacre que ficou mundialmente conhecido como Paralelo 11, ocorrido no início dos anos 60, na região de Roosevelt e Parque do Aripuanã, situadas no território jurisdicional da Subseção Judiciária de Vilhena (RO).
As ações protagonizadas por empresários inescrupulosos teve a cobertura de agentes do Estado do extinto Serviço de Proteção aos Índios (SPI), órgão da União, criado em 1910, por meio do Decreto nº 8.072/1910, para prestar assistência aos indígenas, velar pelos seus direitos e evitar a invasão de terras indígenas. O SPI foi substituído pela Funai.
O assassinato em massa de cintas-largas foi cometido por pistoleiros com cobertura de funcionários oficiais, entre eles o próprio diretor do SPI, o major da Aeronáutica Luiz Vinhas Neves que foi demitido ao fim de uma investigação ordenada pelo então ministro do Interior, o general Albuquerque Lima, baseado num relatório oficial de 5.115 páginas distribuído ao longo de 21 volumes que ficou conhecido como Relatório Figueiredo.
O relatório, produzido por uma comissão criada para estudar o caso, afastou 200 funcionários do SPI, indiciou 134, incluindo dois ex-ministros, dois generais, um tenente-coronel e dois majores. Dos acusados, 38 foram demitidos a bem do serviço público e 17 presos, entre eles Vinhas Neves.
O Massacre do Paralelo 11, como foi definido pela imprensa da época, incluiu do roubo ao estupro, passando por grilagem, assassinato, suborno, tortura e outros comportamentos que chocaram Albuquerque Lima e os membros da comissão investigativa.
Trecho do Relatório Figueiredo narra tortura de índios
Nessa época, os choques já estavam se concentrando no Mato Grosso, estado que se abria para a fronteira agrícola, ainda que, na Bahia, também ocorressem crimes odientos. Fazendeiros e políticos, em ações combinadas, liquidaram duas comunidades pataxós espalhando, propositadamente, o vírus da varíola, estratégia convencional na luta pela posse da terra no Brasil, como foi exaustivamente denunciado por Darcy Ribeiro.
Para liquidar os beiços-de-pau (tapaiúnas, do tronco lingüístico jê) no Mato Grosso, um povo que já foi numeroso e hoje não chega a uma população de 100 pessoas, fazendeiros, com a ajuda de funcionários do SPI, presentearam os índios com alimentos misturados a arsênico, veneno letal. Em algumas aldeias aviões atiraram brinquedos contaminados com vírus de gripe, sarampo e varíola, a última delas uma doença agora erradicada do planeta.
Relatos de assassinatos de indígenas (relatório Figueiredo)
Missões e desconfiança
Mas o pior de todos esses acontecimentos trágicos foi o Massacre do Paralelo 11, recuperado pelo depoimento de um dos participantes, o seringueiro Ataíde Pereira dos Santos. O relato a seguir resultou do levantamento feito pela comissão organizada para investigar o caso. Ataíde falando:
– Minha tarefa era só matar o chefe dos cintas-largas. O índio estava isolado e era o único que não trabalhava, encostado a uma pedra, parecendo fiscalizar os outros. Aí Chico Luiz me disse: ‘Segura o capitão deles que eu acabo com o resto’. O Chico Luiz me escalou porque confiava na minha pontaria. O ‘Boliviano’ [membro do grupo de ataque] tinha uma winchester, mas eu nunca errei com meu velho mosquetão – relatou o seringueiro.
Naquele dia, os atacantes dos cintas-largas estavam na margem oposta do Aripuanã, afluente do Madeira que atravessa a reserva indígena. Era um grupo de seis homens capazes de se deslocar na floresta com a habilidade de um índio. Chico Luiz era o chefe do grupo, que estava a serviço de Antonio Mascarenhas de Junqueira, seringalista respeitado em Mato Grosso, conhecido pela prática de assassinar índios. O grupo havia deixado o seringal, na confluência dos rios Juinamirin e Juruena, subindo por este último até Águas Bravas, onde o Juruena revolto não permite a navegação. Penetraram na selva e a partir daí receberam apoio aéreo de um Cessna que lançava, periodicamente, alimentos e munição.
O grupo atingiu a maloca dos cintas-largas à noite, com armas engatilhadas e sem fazer fogo capaz de denunciar sua presença. Nem um cigarro foi fumado durante toda a espera, quando se falou pouco e a sussurros.
Ao amanhecer, com os cintas-largas deixando seus abrigos, os homens estavam prontos do outro lado do rio:
– Eu quase dormi na pontaria, mas quando apertei o gatilho o índio caiu – relatou Ataíde. Mas ele mesmo ficaria horrorizado com as cenas que se seguiram. Chico Luiz portava uma metralhadora e os demais winchester-44 (‘papo-amarelo’), arma de alto poder de fogo, além de pistolas 38. Os índios não tinham como se defender sob a fuzilaria deflagrada pelo disparo de Ataíde, mas o grupo só atravessou o rio quando se deu conta de que todos estavam mortos.
A surpresa, que desconcertou Ataíde e os outros, foi a presença de uma índia levando pela mão uma criança com idade estimada posteriormente em 5 anos. Ela nem correu. Estava sem forças. Apenas chorava, o que, no relato de Ataíde, irritou Chico Luiz:
– É preciso matar todas essas pragas – berrou ele para o resto do grupo.
Ataíde disse ter tentado contemporizar:
– Não faz mais judiação, Chico. Os cintas-largas vão querer se vingar. E os padres também não vão gostar disso – argumentou, referindo-se a missionários da ordem Consolata, que trabalhavam com os índios.
– A gente pode ficar com a mulher. Ela é nova e bonita e se você não quiser a gente leva de presente pro Amorim – acrescentou Ataíde, referindo-se ao chefe do grupo que não estava presente, mas gostava de violentar índias.
– Quem quiser mulher que venha buscar mulher no mato – berrou de volta Chico Luiz.
Então, o pistoleiro agarrou a mulher, prendeu-a com uma corda numa árvore, de cabeça para baixo e, com um único golpe de facão, quase abriu seu corpo ao meio. A criança já estava morta, com um tiro na cabeça. Em poucos minutos a habilidade macabra do pistoleiro esquartejou o corpo da mulher enquanto os outros ateavam fogo à maloca minutos antes tranqüila e cheia de vida.
Ataíde relatou à comissão que pensou em alvejar Chico Luiz pelas costas, mas se acovardou e permaneceu quieto:
– Todos nós pensamos que ele havia ficado louco, mas ele continuou dando as ordens e mandou que atirássemos os corpos no rio. O ataque não durou mais que uma hora, rememorou Ataíde, ‘porque o Sol ainda não estava a pino quando partimos’.
Cada um dos assassinos deveria receber um pagamento de 50 mil cruzeiros, mas Junqueira, o patrão, recusou o pagamento sob pretexto de que não queria mais aquele tipo de ação por ser muito caro. A estratégia mais barata seria bombardear as aldeias com dinamite, usando avião. Inconformado com a recusa do fazendeiro, Ataíde resolveu vingar-se e relatar o crime com justificativas:
– A gente mata porque, às vezes, fica até seis meses no mato e acaba virando bicho. Os cintas-largas estão sentados em cima de grandes jazidas de cassiterita, a terra deles dá boa planta e tem muito mogno. Eles escolhem a melhor terra e não querem sair de lá. É preciso usar a força.
O Massacre do Paralelo 11 foi o fim do SPI criado em 1910 pelo marechal Cândido Mariano Rondon. O SPI foi substituído pela Funai, em 1967, mas boa parte dos funcionários corruptos do antigo órgão foi mantida. Novas violências seriam cometidas nos anos 70 e uma delas ainda está para ser devidamente contada: o massacre dos waimiris-atroaris (na versão dos velhos eles foram atacados com bombardeios e veneno atirados de aviões) durante a construção da BR-0174, que liga Manaus a Boa Vista, capital de Roraima.
Veja abaixo o Relatório Figueiredo
*Com informações do Observatório da Imprensa
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PAINEL POLITICO (ALAN ALEX)
Alan Alex Benvindo de Carvalho, é jornalista brasileiro, atuou profissionalmente na Rádio Clube Cidade FM, Rede Rondovisão, Rede Record, TV Allamanda e SBT. Trabalhou como assessor de imprensa na SEDUC/RO foi reporte do Diário da Amazônia e Folha de Rondônia é atual editor do site www.painelpolitico.com. É escritor e roteirista de Programas de Rádio e Televisão. .