SOBRE A SOLIDARIEDADE
É característica original das espécies animais a gregariedade; até os animais irracionais vivem em coletividade, razão pela qual se lhes dão os substantivos coletivos da gramática: não são adjetivos, são substantivos, pois que da essência da substância do que lhes é inerente e imanente.
A gregariedade do viver coletivo necessarialmente leva à proteção de um em benefício de todos, o que, implicitamente envolve, lato sensu, o sentido de solidariedade.
A gregariedade e a solidariedade são características que contribuíram para que a espécie humana sobrepujasse a força física de animais portentosos ao longo da evolução animal.
Mas a irracionalidade da primeira natureza humana conflita com a sua segunda natureza racional, que se traduz, segundo Nietzsche, numa ânsia de poder de uns sobre outros que por vezes anula o caráter solidário que lhe é imanente.
Os animais irracionais se digladiam e se matam entre si pela disputa de poder e do amor das fêmeas com as quais querem acasalar e perpetuar a espécie de modo fisicamente aprimorado.
Nós, os humanos, conservamos esses traços da irracionalidade beligerante animal e as guerras fratricidas são o testemunho mais evidente disso, que é potencializada por uma relação social mundial que é sobretudo antissolidária.
A caridade é um resquício de humanidade solidária.
Nesse sentido, a caridade é benvinda, quando não exercida pela hipocrisia dos que querem parecer sensíveis ao drama humano desde que os carentes continuem como tais e dependente dos caridosos.
Desconfio da caridade dos que a publicitam e se posicionam no dia a dia de modo a conservar as causas que promovem a carência social majoritária.
Desconfio da caridade de quem se recusa a raciocinar fora dos padrões pré-estabelecidos, tal qual alguém que rejeita o espelho por medo de ver a sua própria face.
Desconfio da caridade de quem elabora um raciocínio ilógico e contraditório, seja por ignorância conservadora ou por interesse na deturpação de conceitos como justificativa para o seu posicionamento social segregacionista e até por desencargo da própria consciência.
A caridade, antes de ser ou não ser demonstração de solidariedade, é testemunho de quão profundamente errada é a nossa relação social; conservar essa última é falta de caridade sincera.
Trazemos em nós, infelizmente, os caracteres de uma primeira natureza irracional que contamina a nossa natureza racional em transição. Aqui cabe a citação da frase do poeta e compositor Chico César: “Deus me proteja de mim e da maldade de gente boa”, ou ainda, da frase “Deus me livre dos meus amigos, porque dos inimigos cuido eu”.
A solidariedade humana é comportamento social abrangente que envolve coragem de contraposição ao conforto covarde de quem prefere o ruim conhecido aos riscos do desvendar de um futuro que possa se apropriar dos ganhos do conhecimento adquirido e projetá-lo de modo radioso com a exclusão dos males sociais de antanho.
Paradoxalmente, o ser humano tem comportamento contraditório em face de um estágio inferior de sua segunda natureza em transição para uma terceira natureza que será intelectualmente superior e isenta da contaminação daquilo que ora é por ele mesmo vivido e que foi por ele construído e conservado.
A nossa sorte é que o movimento dialético dos fatos sociais altera permanentemente a acomodação negativa de um modo de relação social que ora entra no seu ocaso com as graves e ameaçadoras turbulências que estamos a enfrentar.
Acredito que seguimos, ainda que por caminhos tortuosos, para uma forma de relação social que no futuro repudiará o presente, igual ao repúdio que temos hoje por aquilo que há pouco mais de 135 anos a lei admitia como justa propriedade sob registro escritural e cartorial de um ser humano vindo da África acorrentado nos navios negreiros, fato social que tão belamente recebeu o escárnio do Poeta Castro Alves em sua breve e eterna vida.
Acredito, sobretudo, que é a solidariedade humana, aliada ao instinto de sobrevivência, ambos preservados, será aquilo que evitará a hecatombe nuclear e a agressão ecológica suicida, constituindo-se como alicerce capaz de se contrapor ao conservadorismo segregacionista, covarde, xenófobo, racista, misógino, supremacista e homofóbico.
Ora, somente sob uma forma de relação social superior, poderemos eliminar de modo substancial a negatividade imanente ao modo de relação social atual, justamente porque é impossível se desentortar as raízes e o caule de uma árvore. Já dizia o poeta popular que “morre torto o pau que nasce torto!” .
A reforma sempre altera alguma coisa na superfície do que está posto para que tudo permaneça inalterado, mas o movimento dialético social tem substância revolucionária capaz de expor as contradições representadas pela negatividade do que se articula em detrimento do ser humano - mesmo que todo esse mal tenha sido por ele mesmo criado - e provoca a necessária ruptura.
É a dialética do movimento com suas teses e antíteses, que por sua vez serão contraditadas novamente num ciclo virtuoso em busca de uma verdade inatingível, mas que se aprimora.
2024 promete! (por Dalton Rosado)
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