Cursinhos avaliam o que esperar de um Enem com a 'cara do governo' Bolsonaro

Diante da declaração do presidente Jair Bolsonaro de que as questões do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) "começam agora a ter a cara do governo", cursinhos pré-vestibulares ouvidos pelo g1 avaliam que temas considerados polêmicos devem ficar de fora da prova, especialmente em relação a pautas ligadas a minorias.
Em meio a relatos de interferência no conteúdo do exame, conforme adiantou o g1, o presidente Jair Bolsonaro foi questionado sobre a crise no Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), responsável pela aplicação do Enem. Nos últimos dias, 37 servidores pediram demissão em massa de seus cargos.
"O que eu considero muito também: começam agora a ter a cara do governo as questões da prova do Enem", afirmou Bolsonaro em viagem a Dubai. "Ninguém precisa ficar preocupado. Aquelas questões absurdas do passado, que caíam tema de redação que não tinha nada a ver com nada. Realmente, algo voltado para o aprendizado."
Após a repercussão negativa da declaração do presidente da República, o vice, Hamilton Mourão, disse que o "governo não mexeu em nenhuma questão do Enem".
Na avaliação do diretor do Curso Anglo, Daniel Perry, "quanto ao conteúdo, é possível que temas considerados polêmicos e controversos, especialmente no campo das pautas identitárias, não apareçam".
No entanto, segundo Perry, no que se refere à cobrança de habilidades, o estudante deve esperar "uma prova no mesmo estilo das edições anteriores".
Para o diretor de performance acadêmica do Colégio e do Curso pH, Luis Abad, como as questões do Enem são previamente testadas, não é possível fazer "alterações bruscas de rumo às vésperas do exame".
"A expectativa para o Enem 2021 é que ele siga os padrões dos últimos exames, inclusive com mesmo nível de dificuldade. Por ser uma avaliação que adota a Teoria de Resposta ao Item no cálculo das notas dos candidatos, seus itens precisam passar previamente por uma testagem, o que não permite alterações bruscas de rumo às vésperas do exame. O que pode ocorrer é a supressão de alguns temas, o que já vem ocorrendo nas últimas edições", afirma.
Esse método de correção da prova - chamado Teoria de Resposta ao Item (TRI) - é programado para dar uma nota menor a quem “chutar” as respostas.
Em relação ao tema de redação, Abad avalia que "não são esperados temas muito diferentes" dos que foram propostos nos últimos três anos.
"A preparação [para a redação] não muda e deve ser feita com base nos temas anteriores da prova, que focam em problemas relevantes da sociedade brasileira. Não são esperados temas muito diferentes, em termos estruturais, daqueles propostos nos últimos três anos", diz.
O diretor pedagógico do Curso Pré-Vestibular da Oficina do Estudante de Campinas (SP), Daniel Simões Santos Cecílio, também considera que os alunos deverão encontrar pela frente uma "prova clássica" do Enem em relação ao conteúdo.
Ele observa que os alunos devem esperar uma prova pautada em competências e habilidades. "Portanto, serão abordados temas relevantes em todas as áreas de conhecimento", afirma.
O coordenador pedagógico do Curso Etapa, João Pitoscio Filho, observa que o Enem já vinha sofrendo alterações. "No ano passado, por conta da pandemia, o exame apresentou provas mais conceituais, exigindo menos cálculos. Como ainda estamos em um período de pandemia, a tendência é que não haja grandes mudanças em termos de conteúdo programático e de dificuldade."
Pitoscio ainda diz que não há garantias de que a prova deste ano tenha sido alterada, mas "caso tenha ocorrido qualquer alteração, as questões devem ser substituídas por outras com o mesmo grau de dificuldade."
Credibilidade em risco
Para o diretor da entidade Todos pela Educação, Olavo Nogueira Batista Filho, a declaração do presidente de que o exame tem agora "a cara do governo" coloca em xeque a credibilidade do Enem.
"Essa é uma frase que dá indícios de interferência não-técnica em algo que precisa ser 100% técnico. Por isso, nosso entendimento é que esse episodio, se somando ao que aconteceu nos últimos meses, põe em risco a credibilidade do Enem", afirma.
A Comissão de Educação da Câmara busca investigar "de imediato" essa e outras acusações feitas pelos 37 servidores que pediram exoneração de seus cargos no Inep. De acordo com a presidente da comissão, Dorinha Rezende (DEM-TO), o ministro da Educação, Milton Ribeiro, será chamado para dar explicações ao colegiado sobre o Enem e a crise no instituto.
Dorinha Rezende disse também que o colegiado vai propor a criação de uma comissão para acompanhar e monitorar o Enem. A prova será realizada neste fim de semana.
Críticas ao Enem e ameaças de 'intervenção'
Durante o governo Bolsonaro, houve episódios de críticas a questões do Enem (por motivos ideológicos) e tentativas de interferir no conteúdo da prova.
Veja abaixo:
- Em 2018, Bolsonaro protestou contra uma pergunta do Enem sobre o dialeto de gays e travestis (pajubá) e chegou a dizer que tentaria "tomar conhecimento" do conteúdo do exame no ano seguinte.
- Em 2019, o Inep criou uma comissão para fazer uma "leitura transversal" das questões que compõem o Banco Nacional de Itens do Enem. O objetivo era "verificar a pertinência com a realidade social" das perguntas.
- À época, "O Globo" revelou, por exemplo, que o termo "ditadura" seria substituído por "regime militar", em um item da prova de Linguagens, Códigos e suas tecnologias.
- Em 2020, uma pergunta sobre as diferenças salariais entre os jogadores de futebol Neymar e Marta gerou reprovação do presidente. Na ocasião, ele afirmou que a prova tem questões "ridículas".
Em 2021:
- Depois disso, foi a vez de o ministro da Educação, Milton Ribeiro, falar em ter acesso prévio ao Enem. Ele voltou atrás após críticas de "censura".
- Em junho de 2021, a "Folha de S.Paulo" teve acesso a documentos que revelavam a intenção de o Ministério da Educação (MEC) criar uma comissão permanente para revisão ideológica da prova. O plano não foi concretizado após a repercussão negativa.
- Em outubro, o Ministério Público Federal recomendou que o Inep não criasse a "comissão ideológica", considerando que a "pretensa neutralidade ideológica da proposta, na verdade, pode esconder um conjunto de ideias contrárias ao pluralismo de ideias e à liberdade de expressão".
- O g1 apurou que, em resposta ao MPF, o Inep disse em 8 de outubro que "não tem previsão de criar a comissão" e que, por isso, "está atendendo à recomendação" do órgão. O posicionamento está em análise no Ministério Público.
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Terceirização do acervo de questões:
- Também neste ano, em agosto, um documento revelou que o Inep estuda a possibilidade de terceirizar a formulação de perguntas do Enem e a "calibragem" dos níveis de dificuldade da prova.
- Servidores temem que o instituto perca o controle da composição das provas e não consiga impedir que interessados obtenham "vantagens ilícitas" ao participarem da composição das questões.