CHICO BUARQUE CONTINUA O MESMO: FIRME COMO GELEIA

28 de janeiro de 2022 379

 

Fico emocionado ao ver novos talentos como o David Emanuel de Souza despontarem, propondo enfoques alternativos aos da minha geração. É pra lá de bem-vindo o rigor filosófico, coerente com sua formação acadêmica, da análise que fez da autocensura de Chico Buarque (vide aqui).

Faltou algo, mas não por culpa dele. É que, ao invés de espírito crítico, prevalece no Brasil um ridículo culto à celebridade, que inclui a superestimação deslumbrada do que um compositor declara sobre política, p. ex., como se sua capacidade de criar belas canções o transformasse em referencial noutros campos em que, na verdade, sua opinião é superficial e irrelevante. 

A coisa chega a tal ponto que até os episódios desfavoráveis a tais ídolos vão sendo cada vez mais omitidos, daí os que vêm depois dificilmente tomarem conhecimento deles; no final, apenas os contemporâneos dos ditos cujos (meu caso) insistem em lembrá-los.

Assim é que a autocensura do Chico Buarque e seu desrespeito à memória da principal intérprete de suas músicas e amiga Nara Leão (1942-1989) não passam de uma repetição da atitude de 1970, quando renegou sua fase lírica e desrespeitou em vida o amigo e parceiro Tom Jobim (co-autor de "Sabiá"). 

Deveria ao menos ter restringido suas retratações às músicas inteiramente suas ("Com açúcar, com afeto" foi um pedido de Nara Leão, que sugeriu o tema porque queria gravar algo nessa linha).

Ele se tornara ídolo da juventude politizada graças a canções como "Pedro Pedreiro" e aos trechos do célebre poema de João Cabral de Melo Neto que ele transformou nos temas musicais da peça Morte e vida severina. Mas, evidentemente, nada tinha de peão de obra nem de lavrador...
Então, quando "A Banda" (1966) fez dele um ídolo das grandes massas e não apenas de uma parcela da classe média intelectualizada, embarcou alegremente nessa canoa, a ponto de participar dos festivais de 1968 com canções de uma inadequação extrema à escalada de radicalização política que marcou todo aquele ano: "Bom tempo" (para quem, cara pálida?!), "Sabiá", "Bem-vinda"...

Como consequência, chegava a ser citado por comandantes militares como exemplo de compositor edificante, que expressava fielmente a alma

Teve, contudo, de descer do muro em 1969 quando, apresentando-se na Itália, o pai sociólogo e historiador lhe contou ter recebido de um militar amigo o aviso de que, se voltasse para o Brasil naquele momento, seria preso.

Ficou por lá tempo suficiente para a poeira baixar e, quando retornou, se viu obrigado a limpar a barra com os jovens que (como eu) haviam acompanhado estarrecidos o rumo que dera à carreira no ano anterior.


Foi o que fez no disco de 1970, Chico Buarque de Hollanda nº 4, quando mandou um recado nas entrelinhas ao musicar um poema do Romanceiro da Inconfidência da Cecília Meireles e fez uma autocrítica explícita em "Agora falando sério":

"Agora falando sério,/ eu queria não cantar/ a cantiga bonita/ que se acredita/ que o mal espanta./// Dou um chute no lirismo, um pega no cachorro/ e um tiro no sabiá./ Dou um fora no violino,/ faço a mala e corro/ pra não ver a banda passar..."

Dalí em diante, poupado pelos militares e perdoado por parte dos fãs que decepcionara anteriormente, Chico se tornou o símbolo da resistência à censura.

E daquela vez nem foi obrigado a colocar num index pessoal as composições de sua fase lírica. Talvez porque não existissem as atuais redes insociáveis

Agora, para não ser cancelado pelas feministas, teve de ir mais longe na negação de si mesmo, de sua obra, de seus amigos e do sentido maior da arte, que jamais pode prostrar-se às imposições de quaisquer poderosos de ocasião. (por Celso Lungaretti)

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Fonte: CELSO LUNGARETTI
A VISÃO DEMOCRÁTICA (POR CELSO LUNGARETTI )