A CINEBIOGRAFIA DE HANNAH ARENDT É UM TRIBUTO À DIGNIDADE DE UMA JUDIA QUE NÃO ABDICOU DO SEU ESPÍRITO CRÍTICO
Barbara Sukowa foi convincente como Hannah Arendt
Não considero o filme Hannah Arendt uma obra-prima da sétima arte.
Estou longe de ser um fã de carteirinha da diretora alemã Margarethe von Trotta, a quem avalio como inferior a outros cineastas que incursionaram pelo cinema político, como Costa Gravas, Damiano Damiani, Francesco Rosi, Gillo Pontecorvo e Giuliano Montaldo.
Seu Rosa Luxemburgo, p. ex., ficou muito aquém da magnitude da personagem histórica que antecedeu Trotsky na firme rejeição dos componentes autoritários que acabariam por descaracterizar completamente a revolução soviética.
Mas, o quarto de século transcorrido entre um e outro filme lhe fez bem (assim como à atriz Barbara Sukowa, muito melhor no de 2012 que no de 1986).
Se na biografia cinematográfica da Rosa vermelha a von Trotta quis abarcar acontecimentos demais e não soube separar o fundamental do dispensável, em Hannah Arendt tomou a sábia decisão de restringir-se ao que realmente importava: a cobertura do julgamento de Adolf Eichmann e o fogo amigo que Arendt enfrentou por não ter abdicado do seu espírito crítico.
Judia alemã, ela se refugiara nos EUA e por lá ficou, tendo se tornado uma respeitada professora de filosofia, autora de um livro famoso: Origens do totalitarismo.
Eichmann: "eu era um funcionário subalterno sem autonomia".
Quando agentes israelenses sequestraram o criminoso de guerra nazista na Argentina, em 1960, Arendt convenceu o jornal New Yorker a designá-la para a cobertura do julgamento de cartas marcadas que o Estado judeu encenaria para dourar a pílula da execução, confundindo justiça com uma vendetta subsequente a um ato de pirataria.
[As bestas-feras da Operação Condor teriam agido da mesmíssima maneira, mas sem o cinismo de tentarem legitimar a lei das selvas...]
Embora não tivesse até então denunciado a ilegalidade e imoralidade intrínsecas àquela farsa judicial, Arendt recuperou-se ao destoar da linha justa israelense, que erigia Eichmann num monstro, com redobrado furor em função da má consciência: perseguidos durante milênios, os judeus, lá no fundo, sabiam muito bem que haviam cometido um erro terrível ao desrespeitarem a soberania de um país que nem inimigo deles era (a Argentina).
Afora que, não tendo sido capturado em território israelense, Eichmann só poderia ser julgado por um tribunal internacional como o de Nuremberg.
Então, vilificavam-no ao máximo, da forma mais estridente possível, para abafar os tímidos posicionamentos discordantes. Começavam a incidir nas mesmas práticas que tanto haviam recriminado nos nazistas.
Arendt, contudo, teve a coragem moral de, nos seus artigos para o New Yorker (depois reunidos no livro Eichmann em Jerusalém - um relato sobre a banalidade do mal) apresentar o réu apenas como um burocrata medíocre, um pau mandado, um elo a mais da engrenagem totalitária.
[É como sempre vi os Ustras, Curiós e delegados Fleury: tão primários e tacanhos que nem sequer aquilatavam o quanto seus atos eram hediondos. Mereciam expiar seus crimes nos 30 anos de cativeiro que as leis brasileiras admitem, mas muito mais culpados foram os que tinham plena consciência do que faziam ao abrirem as portas do inferno. Refiro-me, claro, aos oportunistas como o Delfim Netto, que lhes retiraram as focinheiras ao assinarem o AI-5.]
Outra heresia, no bom sentido, de Arendt foi apontar a cumplicidade de alguns judeus com os carrascos: os chamados conselhos judaicos, na Alemanha e na Polônia, haviam ajudado os nazistas a confiscarem bens, arrebanharem as vítimas e as enviarem para os campos de concentração. Era uma informação que os israelenses preferiam omitir, por motivos propagandísticos óbvios.
Foi o suficiente para desabar uma tempestade de críticas sobre Arendt, que passou a ser tão estigmatizada pelos judeus (inclusive os progressistas), como, digamos, Joaquim Barbosa pelos petistas. Para quem nunca soube ou não se lembra, mesmo sendo um ministro do Supremo simpático aos ideais esquerdistas, ele manteve a imparcialidade no julgamento do mensalão, ao invés de empurrar os delitos companheiros para baixo do tapete.
Hannah Arendt foi de uma dignidade exemplar, não recuando um milímetro.
Daí merecer hoje nosso enfático reconhecimento, não só por pela relevância e atualidade de sua obra, mas também por haver sido uma pensadora que teve o vislumbre do ovo da serpente sionista e se manteve fiel a sua visão libertária, resistindo às fortíssimas pressões oriundas do seu círculo.
Se dependesse dela, Israel teria continuado a ser o dos kibutzim, não o dos pogroms. (por Celso Lungaretti)
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