1965: A BOSSA TIRAVA O BRASIL DA FOSSA.
Marco da retomada artística: o Show Opinião.
Brasil, 1965. A repressão que se abatera sobre sindicatos, partidos políticos e entidades estudantis não foi estendida às artes, cuja relevância como fator subversivo vinha, até então, sendo quase nenhuma..
O teatro de denúncia, os Centros Populares de Cultura, o cinema novo, tudo isso até então atingira contingentes pouco expressivos em termos numéricos, daí os novos donos do poder terem se permitido adotar com relação à cultura, uma postura inicial de déspotas esclarecidos...
Como consequência, os palcos e telas começaram a ser catalizadores do repúdio ao regime e das esperanças de uma reviravolta popular, ocupando o espaço dos canais de comunicação que permaneciam bloqueados.
Surgiam espetáculos de integração entre a música, a literatura e o teatro, como Liberdade, Liberdade e o Show Opinião (colagem em que os personagens-símbolos do povo oprimido, camponeses e favelados, eram representados pelo compositor de baião João do Valle e o sambista Zé Keti, respectivamente).
Oduvaldo Vianna Filho e Isabella em O desafio
O cinema, por meio de Paulo César Saraceni, lançava O desafio, filme cujo título aparecia em pichações contestatórias nos muros de São Paulo.
A música, após o refluxo da bossa-nova, tendia para um maior engajamento político e social, na linha defendida por Carlos Lira, Sérgio Ricardo, Edu Lobo e Nara Leão.
E a redescoberta ou revalorização dos sambistas do morro, colocados em evidência graças às parcerias com expoentes da bossa-nova (Pixinguinha/Vinícius de Moraes, Carlos Lira/Zé Keti, etc.), ainda rendia dividendos.
Foi quando o Centro Acadêmico Onze de Agosto, da tradicional Faculdade de Direito da USP, sediada no Largo São Francisco (de papel destacado em vários episódios de resistência ao arbítrio através dos tempos), decidiu promover noitadas de música popular no Teatro Paissandu, sob o comando do radialista Walter Silva, apelidado de o pica-pau (ele era o apresentador de um programa de rádio dedicado à bossa-nova, O pick-up do pica-pau).
Logo esses shows eram assistidos por plateias entusiásticas (estudantes, intelectuais, boêmios, profissionais liberais).
O Paramount na fase das noitadas de MPB
Um ótimo documento do período foi o LP Uma Noite no Paramount, lançado em 1983 pela RGE – não é fácil de encontrar-se na internet, mas os obstinados o conseguem baixar.
Divide-se quase que meio-a-meio entre a bossa-nova tradicional e canções de protesto como "Terra de ninguém", "Maria Moita", "Sem Deus com a família", "Aleluia", "Pedro Pedreiro".
A temperatura do espetáculo pode ser aferida pelo frenesi do público quando César Roldão Vieira canta versos do tipo "a minha mulher é só minha,/ a do branco eu nem sei se só dele é".
Um observador atento, Solano Ribeiro, viu a chance de realizar um evento de grande repercussão. Ele era um dos mandachuvas da TV Excelsior - Canal 9 (emissora paulista já extinta)..
1º FESTIVAL DE MPB: A ESTRELA SOBE NO GUARUJÁ..
Idealizado por Solano Ribeiro, o 1º Festival da Música Popular Brasileira teve lugar no Guarujá (litoral sul paulista), em abril de 1965.
Projetou nacionalmente Elis Regina, que aos 12 anos começara a se apresentar em programas infantis de Porto Alegre, tendo depois gravado dois discos de músicas para a juventude e, afinal, firmado reputação como cantora de bossa-nova nas boates cariocas do Beco das Garrafas.
Sua interpretação vigorosa, arrebatada, com movimentação frenética (movia os braços como pás de moinho...), transformou-a instantaneamente em estrela.
Defendeu a canção vencedora, "Arrastão", parceria de Edu Lobo e Vinícius de Moraes.
As classificadas a seguir não marcaram época:
- 2ª, "Valsa do amor que não vem", de Baden e Vinícius, por Elizete Cardoso;
- 3ª, "Eu só queria ver", de Vera Brasil e Mirian Ribeiro, por Claudete Soares;
- 4ª, ""Queixa", de Sidney Miller, Zé Keti e Paulo Tiago, por Ciro Monteiro; e
- 5ª, "Rio do meu amor", de Billy Blanco, por Wilson Simonal.
Como grande injustiçada ficou "Sonho de um carnaval", composição na mesma linha das que valeriam depois a Chico Buarque inúmeras vitórias em festivais. Os jurados passaram batidos pelos belíssimos versos e o enfoque desencantado, adulto, do fenômeno carnaval.
E, na interpretação de "Sonho de um carnaval", aparecia Geraldo Vandré – um paraibano que há mais de dez anos tentava a sorte no eixo Rio/São Paulo e já gravara um LP de peso (embora passasse quase despercebido).
"O FINO DA BOSSA", COM O CAST DO PARAMOUNT.
A poderosa TV Record - Canal 7 reagiu imediatamente, arrancando Solano Ribeiro a peso de ouro da Excelsior e entregando-lhe a organização do seu próprio festival.
Da mesma forma, contratou Elis Regina e colocou-a no comando de um programa que teria capital importância na afirmação dos novos valores da MPB: O Fino da Bossa.
Gravado as segundas-feiras no Teatro Record e levado ao ar nas quartas, O Fino da Bossa logo era enviado também a outros Estados brasileiros, além de ser reprisado nas tardes de sábado para os telespectadores paulistas.
O show inaugural ocorreu no dia 17 de maio de 1965, aproveitando, basicamente, o cast que vinha se exibindo no Paramount: Zimbo Trio, Ciro Monteiro, Nara Leão, Baden Powell, Edu Lobo, Jair Rodrigues e Maria Odete.
Comentando o espetáculo de estreia, o crítico de O Estado de S. Paulo destacou a capacidade de Elis Regina em acumular as funções de intérprete e apresentadora:
"...atuou a jovem e talentosa cantora em tal qualidade e como mestre de cerimônias, papel que desempenhou a inteiro contento. Temos a certeza de que, com mais um pouco de traquejo, a artista adquirirá, nessa prática, aquela mesma arte que a distingue como cantora popular moderna, de grande capacidade de transmissão, de interpretações muito pessoais e imaginativas..."
CRISE NO "FINO": A CLASSE MÉDIA TOMA O COMANDO.
Apesar de ser até hoje lembrado com esse nome, O Fino da Bossa só existiu nos três primeiros meses de programa. O título pertencia a Horácio Berlink Neto, que o utilizara num festival de bossa-nova por ele organizado em 1964 e no LP daí resultante.
A Record pôde aproveitá-lo no curto espaço de tempo em que Berlink foi o assistente do produtor Manuel Carlos. Depois, viu-se obrigada a trocar a denominação para O Fino.
Como atrações fixas, Elis Regina, Jair Rodrigues e o Zimbo Trio.
Elis e Jair respondiam pelas apoteoses finais, em pot-pourris que vinham dos tempos em que protagonizaram o show Dois na Bossa, no Teatro Paramount, sucesso no palco e em disco.
A fase inicial do programa, com predominância dos veteranos da bossa-nova e de sambistas do morro, segurou uma boa audiência até o início de 1966, quando O Fino começou a despencar nas pesquisas do Ibope.
Mas, a chama da resistência ao arbítrio se acendera, com a novidade de que a arte passara a ser uma via de escape face ao amordaçamento de partidos, sindicatos e outras entidades representativas da sociedade civil.
Com isto, a MPB ganhou um formidável impulso, colocando em evidência uma constelação de talentos tão superlativos como nunca houvera antes, nem haveria depois. (por Celso Lungaretti)
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