Vai na Fé expõe que mulheres fortes também são vítimas de homens abusivos.

A gente tem uma válvula de culpar a vítima quando percebe que uma mulher está se submetendo a um relacionamento abusivo. Como nem sempre basta alertar, o pensamento coletivo tende a julgar como ingênua, boba, carente demais quem cai na lábia de um cara safado. É um mecanismo de defesa para que a gente se proteja do medo de pensar: será que eu cairia nessa? Claro que não, eu sou esperta.
A Lumiar (Carolina Dieckmann) de Vai na Fé, novela das 19h da Globo, derruba essa teoria. Ela é inteligente, uma advogada respeitada, conhece o padrão do relacionamento abusivo e jamais cairia em uma cilada. Lumiar é a mulher que eu e você gostaríamos de ser — ou dizemos por aí que somos. Ela não se deixaria enganar, certo?.
Só que a novela se desenha de uma maneira que a personagem te coloca dentro de um relacionamento abusivo. O abusador infelizmente não é um monstro com três olhos e língua bipartida. Costuma ser um cara bonito, com pegada, charmoso, interessante. E, perspicaz, vai na presa certa: aquela garota inteligente, que poderia ter a vida que quisesse, mas está fragilizada e vulnerável. A rede que se forma dessa combinação é difícil de sair. É exatamente onde o público se vê ao entender a arapuca montada por Théo (Emílio Dantas) na novela.
"Como eu pude não ver o padrão? Homem que parece bom, mas ao ser contrariado fica violento", diz Lumiar, quando a ficha começa a cair. O rapaz que leva sua mãe ao hospital, que apresenta uma vida divertida, que ela nunca imaginou, que é capaz de entrar em sua frente e tomar um tiro para protegê-la (esse é fera, hein?). Um homem desse não se acha por aí..
Mas é alguém que já estuprou uma mulher, que trai com mulheres mais novas, que já abusou verbalmente e violentamente da esposa. Como Lumiar poderia acreditar que dentro do homem que diz que a ama e a trata como uma rainha existam essas duas versões antagônicas? "Tem que ser muito burra para jogar um homem como eu fora, que te ama de verdade pelo que você é", ele diz para quem agora o enfrenta.
Ser abusivo pode ser uma saída para quem quer sanar um complexo de inferioridade. Ao envolver mulheres em estado de vulnerabilidade, seja pela bebida, pela autoestima dilacerada ou pela solidão, ele se faz maior e melhor do que acredita que é. E cria uma teia em que precisa disso para não encarar a si mesmo como de fato se vê. Sob o olhar de uma companheira que é sempre colocada em posição de inferioridade, ele se sente melhor. E a suga.
Lumiar, rejeitada pelo ex, carente como todo mundo, e triste com as lambadas que tomou da vida, é a vítima ideal. A partir daí, se constrói sobre um alicerce de areia um amor que parece sólido. A moça crê ser melhor porque ao lado dela há um homem que a ama pelo que ela é. Quando, na verdade é fácil amá-la: ela é ótima, só não sabe disso.
Théo talvez nem perceba que está fazendo algo condenável. Ao quebrar tudo em sua casa, com raiva, deve de fato acreditar que a vida está sendo injusta com ele. É o tipo de cara capaz de pregar contra o que ele mesmo faz na semana seguinte, para a próxima vítima, criando novos laços de dependência que o sustentem. Se não for para a cadeia, cá entre nós, não fica um mês solteiro. Sem a vítima, ele é só areia. Num rostinho bonito, há de se registrar.
O moço faz a gente se encolher no sofá quando olha nos olhos da mulher e diz com todas as letras: "Você não vai encontrar ninguém nessa vida, o seu destino é ficar sozinha. Sozinha". O choro de Lumiar de medo da ameaça é o nosso choro. E se for verdade?.
Eu venho de lá do futuro contar para Lumiar e para outras tantas mulheres que estão com medo de fechar a porta para esses caras e nunca mais entrar ninguém: a vida só melhora. Deixa ir. Chora um pouco. Porque depois de se libertar da co-dependência criada por um abusador para te sugar... nada mais te derruba, não..
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PS: Esse texto tem a colaboração impecável da musa das novelas e das novelhas, Cintia Marcucci..
** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL