UM DIA COMUM

3 de janeiro de 2018 784

Especiais espécimes SRD largados pelas ruas, vítimas de abandono, descaso, preconceito...

Dois quarteirões apenas, e cruzo com uma criança levando nos braços sua criança recém-nascida...

Basta o primeiro semáforo e já o desrespeito ao pedestre, e nalguns à frente, desta vez, é o pedestre que abusa...

Um vazamento de água, água que é vida e que jorra bestamente...

Soa altíssimo o alarme, mas, o jovem ao lado, tão concentrado em seu jogo no celular, sequer se incomoda...

Sem que mova um cílio ou canto de boca, sem que esboce qualquer monossílabo ou grunhido, pela indiferença total portanto a moça nega a informação...

Uma esmola que se pede; uma que se nega...

Desce esse correndo do ônibus, sobe aquele as escadas do shopping, dorme na ruela o maltrapilho. Nisso meus olhos se espantam. Indignam-se ao que deparam com três meninos uniformizados, ostentando o emblema da boa escola, de boa família me parecem, boa aparência. E me indigno porque passada a instantânea boa impressão, no instante seguinte observo-os jogando pedra naquele que dorme, abandonado à própria sorte, diga-se, azar.

No entanto, querem a propaganda, este candidato, aquele vizinho, aquela amiga, um nobre desconhecido me fazer crer que isto não possa sob hipótese alguma ser azar. Gente assim, se é vítima, é da preguiça, da má vontade; gente folgada.

Julgamento torpe.

Lanço um olhar revoltoso aos meninos que não o enxergam, no afã de fugir ao revide do sonolento homem que, por sua vez, não se move. Apenas seus olhos se mexem. E o “dentro em si”, decerto.

Caso vissem meu olhar, os astutos meninos, futuros grandes homens, daqui a pouco competentes profissionais ririam provavelmente.

...

Por querer crer que, ao invés disso, refletiriam no seu “dentro em si”, e evitariam a pedrada na próxima oportunidade, é que rumino lá e cá às vezes.

E quando a oportunidade se concretiza tento não ver as coisas como distintas de mim, mas, como me distingo perante cada uma delas.

Em alguma parte nesse apanhado de episódios cotidianos que costumamos avaliar de fora, enquanto estatística, somos partícipes da estatística também.

Como eu não o pensaria, se o emblema nos uniformes do trio é idêntico ao que estampa os dos meus filhos.

 

 

 

 

 Valquíria Gesqui Malagoli, escritora e poetisa, vmalagoli@uol.com.br / www.valquiriamalagoli.com.br