TRÊS PERGUNTAS SOBRE A HISTÓRIA DOS EXCLUIDOS

Participei, tempos atrás, de um fórum de historiadores no qual nos foi proposto que respondêssemos, por escrito, a três perguntas sobre a chamada “História dos Excluídos”: 1) Pode-se realmente falar na existência de uma “história dos excluídos”? 2) Quem são os excluídos na era moderna? 3) Como resgatar sua história?
Transcrevo a seguir as respostas que dei a cada uma delas:
1) Sim, pode-se falar na existência de uma história dos excluídos. Se entendermos por essa designação todos aqueles cujos feitos não são ou não foram registrados pela historiografia; eles também fazem história, embora de modo menos espetacular, menos visível, mas nem por isso de pouca importância.
2) Depende do que se entende por “era moderna”. Se por “era moderna” entendermos a Idade Moderna (ou seja, o período que se estendeu desde o fim da Idade Média até a Revolução Francesa), excluídos eram os plebeus, os artesãos, os camponeses, o baixo clero e a pequena burguesia. Já a grande burguesia, embora não dispondo ainda de representação política, não poderia, na verdade, ser incluída no rol dos excluídos. Se por “era moderna” entendermos os tempos atuais, eu diria que excluídos são todos aqueles que, de alguma forma, ficam à margem da sociedade de consumo moderna, ou por falta de dinheiro, ou por falta de representatividade, ou por falta de comunicação, ou de voz ou de vez. Eu somente ressalvaria que muita gente esperta, por oportunismo ou malandragem, quer passar por “excluída” e, assim, gozar das benesses e privilégios que tal condição hoje em dia proporciona...
3) Um caminho é o utilizado por Carlo Ginzburg, no livro “O queijo e os vermes”, publicado em 1976; sua metodologia foi a de pegar as atas do processo inquisitorial do moleiro Menocchio, desconstruir o seu discurso e, por via de representação, tentar reformulá-lo e, assim, descrever minuciosamente a sociedade em que se passou o episódio. Ginsburg produziu um livro clássico, verdadeiro modelo no seu gênero, mas que sofreu fortes críticas de ter-se deixado levar pela imaginação além do devido, e por ter generalizado muito sua interpretação, a partir de um único caso.
O resgate da história dos excluídos enfrenta, como Ginsburg enfrentou, duas dificuldades. A primeira é que não existem, normalmente, documentos escritos provenientes dos próprios excluídos. Os documentos existentes são os conservados pelos “incluídos”, presumivelmente suspeitos de parcialidade. A segunda é que, utilizando-se esses documentos suspeitos, há que desconstruí-los, pelo caminho das chamadas representações, reinterpretando-os - e esse é um processo extremamente perigoso, pois facilmente incorremos no pecado mortal do historiador, que é o anacronismo. Facilmente somos levados a atribuir a pessoas de outros tempos nossos pressupostos e a mentalidade de nossos dias.
Vou dar um exemplo. Se eu quiser escrever sobre a casta dos párias, na Índia, na ótica que imagino ser a de um pária, eu direi que é um infeliz, uma pessoa ferida em seus mais elementares direitos etc. etc. Estarei, assim, descrevendo o que eu, Armando Alexandre dos Santos, sentiria se um dia adormecesse em Piracicaba, no meu apartamento, e por uma misteriosa metamorfose kafkiana acordasse pária no interior da Índia...
Estarei sendo correto nessa interpretação? Não necessariamente. Confesso que foi enorme a minha surpresa quando conversei, há cerca de dez anos, com uma amiga que foi passar uma temporada na Índia. É uma mulher inteligente, muito esclarecida, é professora universitária e já foi Secretária da Educação em seu estado natal. Para minha surpresa, ela me contou que, na Índia, fez questão de conversar com pessoas de todas as castas e pôde certificar-se de que, por mais espantoso que isso nos pareça, os párias de lá não são infelizes, nem revoltados. Simplesmente, eles são párias, porque nasceram párias e acham isso natural. Não invejam os não-párias, nem sequer se comparam com eles. Como entender isso, com a nossa cabeça? Confesso que não entendo, mas é assim.
Ao reconstruirmos o mundo dos excluídos do passado, é preciso tomar muito cuidado para não projetarmos artificialmente, para a cabeça deles, reivindicações, anseios e perplexidades próprios do nosso tempo. O risco de cometer tal erro é muito grande.
ARMANDO ALEXANDRE DOS SANTOS é historiador e jornalista profissional, membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e da Academia Portuguesa da História