Tariq Ramadan: do homem público ao privado

Mais um homem de grande reputação está sendo acusado de violência sexual; mais um da série desencadeada desde outubro do ano passado, com o escândalo implicando o cineasta Harvey Weinstein. Trata-se de Tariq Ramadan, pregador midiático, de reputação e influência internacional no meio religioso muçulmano. Pensador bastante controvertido, este filósofo suíço, de origem egípcia, que reside em Londres, é também professor de estudos islâmicos contemporâneos na Universidade de Oxford. No ano passado, publicou o segundo livro com o sociólogo Edgar Morin, L’Urgence et l’Essentiel (éditions Don Quichotte, 2017). A influência de seu pensamento tanto no mundo ocidental como no mundo arabe é muito forte.
Tenho acompanhado algumas de suas posições e ideias desde 2003, quando, por ocasião de uma discussão com Nicolas Sarkozy, então Ministro do Interior, Tariq Ramadan posicionou-se com força afirmando-se no debate político e intelectual francês ao tratar de questões importantes relativas à evolução da comunidade muçulmana no mundo moderno, questões que, na Europa, misturam dois “capítulos” delicados, que são o terrorismo e a imigração.
Antes de voltar às denuncias de violência sexual feitas por duas mulheres, que conduziram o islamólogo a uma detenção provisória, gostaria de comentar o Tariq Ramadan homem público, professor e intelectual, a partir de dois tópicos da atualidade cujas análises feitas por ele me pareceram pertinentes, diferenciando-se de opiniões « lugar comum » de vários políticos e intelectuais: o primeiro é sobre a lapidação de mulheres em praça pública, e o outro tópico, é relativo à aplicação da lei laica na França, sobretudo a respeito do problema do porte do véu nas instituições da República, como a escola.
Sobre a lapidação, Tariq Ramadan assume a posição, evidente para qualquer humanista, que é a de condenar tais atrocidades. Mas sua proposta de ação sempre foi objeto de incompreensão provocando muita indignação e contestações veementes. Para o teólogo, a única maneira de tentar mudar a mentalidade nos países muçulmanos, fundamentalistas, em que tal prática ainda existe, seria através da aplicação de uma moratória, ou seja, cessação desta prática, seguida de um debate de fundo a partir do texto sagrado, o Corão, no caso, demonstrando assim que tais violências sobre as mulheres – na maior parte dos casos condenadas por adultério – não podem fundamentar-se nem justificar-se na tradição muçulmana.
Ora, os ataques contra sua proposta foram inúmeros durante todos estes anos, pretendendo que seu pedido de “uma simples” moratória era prova de condescendência com tais atrocidades. Os oponentes de Ramadan lembram que diante de homens que apedrejam mulheres não há discussão possível; diante de tais barbaridades a única arma é a condenação total. Sempre me pareceu muito fácil condenar a gritos, do alto da Torre Eiffel, e, a partir daí, disseminar os Direitos do Homem como uma evidência universal a ser aplicada em esfera mundial, sobretudo àqueles que ignoram totalmente sua existência nos regimes teocráticos. A aplicação desta política, ainda que humanista, parece se revelar mais como sequela de um espírito de colonização que impõe seus ideais como valores supremos. A História mostra que os estragos da aplicação de um tal princípio foram por vezes maiores do que as boas intenções civilizatórias postuladas inicialmente. Deste ponto de vista, a proposta de Ramadan distingue-se do resto e sempre me pareceu a mais realista.
Sobre o problema do porte de sinais religiosos ostentatórios, que existe, de fato, em algumas regiões da França, sobretudo no ensino secundário e universitário, Tariq Ramadan foi consultado na condição de expert pela comissão da Assembléia Nacional encarregada de tratar do assunto em 2012. O projeto pretendia reformar a lei de 1905, que rege a laicidade, visando explicitar a interdição dos sinais ditos ostentatórios. Tariq Ramadan lembrava aos deputados a necessidade de estarem atentos aos “efeitos psicológicos” provocados por uma lei que visa unicamente a interdição, sobretudo quando se trata de enquadrar a jovem geração de moças convertidas. Destacava assim que “o ingresso de uma adolescente na religião se dá concomitantemente pela ruptura com o seu passado num contexto de afirmação identitária, e que toda lei que interdita pode provocar um efeito contrário ao que é almejado, no caso debatido, um excesso de adesão ao fato religioso, reforçando ainda mais a ruptura com o passado”.
Lembro que, na época, quando compartilhei o vídeo desta fala de Ramadan ocorrida na Assembléia, considerei que, num momento de proliferação de leis em diferentes âmbitos da vida social para regulamentar normas e condutas, era bem vinda sua manifestação dirigida a nossos políticos: uma fala que levava em conta as impertinências do inconsciente (que Ramadan chama “efeitos psicológicos”), inerentes a qualquer sujeito quando se trata de conjugar interdição, transgressão e autorização.
Mas em novembro de 2017 é a face privada do professor que emerge. Duas mulheres prestam queixa na polícia, acusando-o de estupros que teriam sido cometidos em 2009 e 2012, razão pela qual, desde a semana passada, Ramadan se encontra em detenção provisória. Junto ao depoimento das presumidas vítimas, acrescentam-se trocas de mensagens e fotos, formando o processo analisado pela polícia durante três meses, antes de executar sua detenção. Os elementos de acusação são escabrosos: humilhação, violência física e sexual num quarto de hotel.
O processo jurídico ainda está em andamento. Mas se tais acusações forem provadas me verei, mais uma vez, refletindo sobre a maneira como o íntimo de um homem pode profanar a imagem do personagem público. O leque de compromissos da condição humana, entre os vícios privados e a postura pública, é um tema antigo e as combinações são múltiplas. Lembremos como certos valores, válidos ainda hoje em nosso “contrato social”, iniciado no século XVIII, se definem pelo entendimento de que os vícios privados estão na raiz da virtude moral, tal qual indicava o médico holandês Bernard Mandeville. Em sua obra de título eloquente, “A Fábula das Abelhas, ou Vícios Privados, Benefícios Públicos”, se lê « Seja tão ávido, egoísta, gastador quanto puder em favor de seu próprio prazer, pois, desta forma, você fará todo o possível pela posteridade de sua nação e felicidade de seus concidadãos ».
Para Freud, no bojo da articulação entre o gozo privado e o (bem) estar social encontra-se frequentemente a condição “polimorfa perversa da sexualidade infantil”. O importante aqui não é o qualificativo perverso, mas as diferentes formas que sua polimorfia toma ao longo do seu desenvolvimento e suas modulações nas relações sociais.
Agora podemos perguntar: se Edgar Morin tivesse conhecimento dos vícios privados de Ramadan, teria ele, mesmo assim, convidado-o para a publicação de um segundo livro? E o jornalista Edwy Plenel, fundador do site de informação Médiapart, teria qualificado-o de “intelectual respeitável, fortemente republicano”, insistindo para não excluí-lo do debate público como alguns pretendiam? E, finalmente, poderia eu ainda admitir suas propostas como pertinentes ?
(*) Alfredo Gil é psicanalista em Paris; membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA) e da Association Lacanienne Internationale (ALI). E-mail: alfredo.gil@wanadoo.fr