Ser humano

O debate sobre a descriminalização do aborto, em discussão no Congresso Nacional e nos meios de comunicação impressos e eletrônicos, visando estender a norma jurídica vigente, que permite o aborto apenas em casos excepcionais (estupro, anencefalia ou perigo de morte), para qualquer gravidez indesejada, nos leva a refletir sobre origem e sentido da vida humana. Os que são contra o aborto apresentam como justificativa a defesa do princípio constitucional do direito à vida. Mas que vida existe num feto, antes do terceiro mês de gravidez, quando ainda não há início de atividade cerebral? Com muito acerto costuma-se definir o homem como um animal racional. Ora, não precisa ser nenhum neurocientista para perceber que o cérebro, como qualquer outro órgão do ser humano, vai se desenvolvendo aos poucos, ao longo da nossa existência intra e extra-uterina, propiciando-nos a vida intelectual que nos distingue de animais e plantas.
Acreditar na existência de uma alma imortal ou espírito puro, independente do intelecto material, que seria colocada por Deus no ato da concepção do ser humano, no momento em que um espermatozoide fecunde um óvulo, é apenas uma questão de fé, sem comprovação científica ou raciocínio lógico. Se a alma humana fosse de origem divina deveria nascer já perfeita, desde sua concepção, sem precisar de evolução. Por suposto, a alma ou o espírito de um adulto deveria ser igual à mente de uma criança, o que não corresponde à verdade existencial. A realidade nos mostra que o ser humano progride continuamente, corpo e alma juntos, conforme a herança genética, o ambiente, a educação, as leituras, as viagens, as experiências de vida em sociedade. A crença religiosa da criação contrasta com o princípio científico do evolucionismo, exposto na famosa obra de Darwin "A origem das espécies" (1859), considerada a nova Bíblia. Os antigos romanos já diziam "nihil ex nihilo" (nada vem do nada) e o químico francês Lavoisier (1743-1794) confirmara: "nada se cria, nada se destrói, tudo se transforma".
Nossa Constituição, por reger um Estado laico por definição, não poderia impor normas religiosas à conduta humana. Mas, infelizmente, nossos legisladores não sempre usam senso crítico, às vezes falhando até na concepção do que seja realmente justo e útil para a sociedade. No caso em pauta, que Justiça é essa que permite a morte de um feto, se resultado de um ato de violência (estupro), enquanto obriga outro feto a continuar vivendo por ser fruto de uma cópula consensual? Em lugar de permitir a discriminação de um ser humano antes mesmo de nascer, por que não descriminalizar de vez o aborto, deixando a decisão para a mulher, que deveria avaliar se tem condições econômicas e psíquicas para criar e educar decentemente o nascedouro? Não há nada pior do que uma gravidez indesejada, resultando num grave problema não apenas para a mulher, mas também para a família e a sociedade. Nações mais progressistas já superaram este impasse, pois trata-se de uma norma permissiva e não impositiva: nenhuma mulher será obrigada a abortar, se não quiser. A mesma celeuma aconteceu com o divórcio, outro preconceito hoje pacificamente aceito e praticado também por gente religiosa. Precisamos acompanhar a evolução dos tempos!
Salvatore D' Onofrio
Dr. pela USP e Professor Titular pela UNESP
Autor do Dicionário de Cultura Básica (Publit)
Literatura Ocidental e Forma e Sentido do Texto Literário (Ática)
Pensar é preciso e Pesquisando (Editorama)
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