Quem aposta na corrida às armas espaciais? (por José Monserrat Filho)

29 de janeiro de 2018 474

“O militarismo, comumente caracterizado pelo rompimento e desintegração, é frequentemente eficaz para aumentar o comando sobre a sociedade, bem como sobre as forças inanimadas da natureza.” 
Arnold J. Toynbee, A Study of History, Oxford University Press, 1951, p. 364.

“Nós, os Povos das Nações Unidas, [estamos] resolvidos a preservar as gerações vindouras do flagelo da guerra, que por duas vezes, no espaço da nossa vida, trouxe sofrimentos indizíveis à humanidade…”
Carta das Nações Unidas, 26 de junho de 1945.

“Política Externa reduz influência dos EUA.” Com esse título, o jornal “O Globo”, de 15 de janeiro de 2018, publica comentário sobre os numerosos fracassos do primeiro ano do governo Trump no campo das relações internacionais. Trump “tornou o mundo mais instável, mais próximo hoje de uma guerra nuclear do que antes” de sua posse, em 20 de janeiro de 2017. Atacou o multilateralismo no quadro global, ignorou aliados, conciliou com ditadores, tolerou ameaças, isolou-se dos grandes problemas internacionais, retirou-se da UNESCO (Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura), abandonou o Acordo de Paris sobre mudanças climáticas, assinado em 2015, que visa manter o aquecimento global abaixo de 2º C, limitando-o a 1,5º C. Em consequência, os EUA perdem a influência que exerciam no tabuleiro mundial.

“A relação com a América Latina é marcada pelo desprezo”, afirma “O Globo”. Trump chamou de “países de merda” alguns Estados da região, citando nominalmente o Haiti. Com a América Latina, Whashington só trata de imigração e comércio, priorizando acima de tudo os interesses dos EUA. Voltou a congelar as relações com Cuba e “adotou uma retórica beligerante com a Venezuela, a qual ameaçou invadir militarmente e impôs sanções”. “O Globo” acrescenta que “a situação não foi diferente com o restante do planeta.

Trump, em declarações e atos, amplia a insegurança do mundo”, “prometendo invasão e guerra nuclear”, e ameaça com sanções países e organizações internacionais por não seguirem sua decisão de reconhecer Jerusalém como capital de Israel. Além de elevar o orçamento militar, cortou o orçamento do Departamento de Estado e o de ajuda humanitária sobretudo aos países e povos carentes do mundo. “No Departamento de Estado (Ministério de Relações Exteriores), o clima é de desolação”, diz o jornal carioca. Segundo publicações americanas, Rex Tillerson, titular da pasta, teria chamado Trump de “idiota”, quando ele resolveu afastar os EUA do Acordo climático de Paris.

Mas a lista de “O Globo” de fracassos diplomáticos da Era Trump não é completa. Um dos pontos omitidos, especialmente grave, é a ativa participação dos EUA no preparo da guerra no espaço, como alerta o “Sputnik”, de 1º de dezembro de 2017. O Pentágono fomenta de modo acelerado uma corrida às armas espaciais, com gastos crescentes e armas cada vez mais modernas, inclusive nucleares. Isso ficou claro recentemente, quando a Primeira Comissão (Comissão Política) da Assembleia Geral das Nações Unidas aprovou resolução prevenindo a corrida armamentista no espaço. Votaram a favor 121 Estados (entre os quais, China, Rússia e Síria), e 45 se abstiveram (sobretudo países europeus). Só cinco países votaram contra: EUA, França, Reino Unido, Israel e Ucrânia. O Conselho de Segurança das Nações Unidas, porém, não adotaria a resolução, pois três de seus Estados-Membros permanentes usariam seu poder de veto: EUA, França e Reino Unido.

Por que Washington não ajuda a bloquear as tentativas de proibir a implantação de armas no espaço? Os EUA alegam temer um “Space Pearl Harbor” – A Primeira Comissão de Desarmamento e Segurança Internacional da Assembleia Geral da ONU aprovou o projeto de resolução intitulado “Medidas práticas para prevenir uma corrida para armamentos no espaço”. Os patrocinadores pediram para abrir imediatamente negociações sobre o desenvolvimento de um documento juridicamente vinculativo que proibisse a implantação de armas no espaço exterior. A Primeira Comissão também aprovou outras resoluções visando a desmilitarização do espaço. Segundo informações das Nações Unidas, nenhum dos documentos propostos pela Rússia foi aprovado pelos EUA. O delegado de Washington, em particular, se opôs ao projeto de resolução proibindo “a primeira instalação de armas no espaço”. O delegado de Moscou ressaltou “as medidas irresponsáveis tomadas no setor espacial no passado, o que levou o mundo ao limiar da catástrofe”. Com a corrida às armas no espaço, ironiza o Sputnik, “os EUA buscam abrir a caixa de Pandora”. Diplomatas russos creem que “uma campanha sem precedentes foi lançada para desacreditar as tentativas da comunidade internacional de impedir a corrida às armas no espaço”. Por isso, a Rússia instou os Estados Membros das Nações Unidas a prevenir a hegemonia de um único país no espaço.

As armas espaciais a serem proibidas não estão definidas com clareza, argumentou um delegado dos EUA. Para Washington, as armas terrestres antissatélites da Rússia e da China não atendem aos “requisitos de transparência e confiança”. Por isso, seria preciso criar um regime de inspeção prévia para os sistemas antissatélite. O diplomata americano explicou também que as normas de segurança nacional dos EUA não preveem a proibição da “primeira instalação de armas no espaço”. Ele disse ainda que os EUA estavam prontos a aceitar uma discussão de especialistas governamentais a respeito dos critérios e princípios de um possível acordo entre Washington, Moscou e Pequim sobre a desmilitarização do espaço.

O retorno dos EUA ao programa Guerra nas Estrelas (Star Wars) dos anos 80 – Rússia e China já manifestaram inúmeras vezes suas preocupações com relação à meta dos EUA de conquistar militarmente o espaço. Trata-se de implantar em órbita equipamentos para neutralizar satélites, eliminar mísseis e atingir alvos na Terra. Militarizar o espaço é missão do programa Mísseis de Defesa Global (Global Missile Defense). Os EUA trabalham desde 1983 na implementação do plano “Iniciativa de Defesa Estratégica” (SDI), que visa desenvolver um sistema de defesa antimíssil com elementos instalados no espaço.

Os EUA planejavam criar uma arma baseada em “diferentes princípios físicos”. Terminada a Guerra Fria, o SDI ficou congelado. Mas o Pentágono não cancelou o desenvolvimento de armas espaciais. Como relata a própria imprensa dos EUA, Moscou e Pequim estão preocupados, sobretudo, com o laboratório de voo dos EUA Boeing X-37 – reminiscência da nave soviética Bouran que voou uma única vez, em 1988. O Boeing X-37 poderia pôr em órbita grandes cargas. O comando dos EUA não revela as missões que esse avião único é capaz de executar. Engenheiros russos estimam que o Boeing X-37 pode ser usado para fins de inteligência, inspecionando satélites e, se for o caso, desativá-los. Militares dos EUA e aliados, por seu turno, garantem que Moscou e Pequim lograram grandes progressos no desenvolvimento de armas antissatélites terrestres: a Rússia estaria testando o míssil antissatélite PL-19 Noudol e a China, o míssil externo Dong Neng-3 (DN-3). Seriam respostas ao Boeing X-37? Pesquisa do Instituto Internacional de Estudos Estratégicos (International Institute for Strategic Studies – IISS, think tank britânico em relações internacionais, criado em 1997) diz que, até 2020, haverá no espaço cerca de 1000 satélites militares. Hoje, os EUA têm 127 desses satélites, a Rússia, 94 e a China, 72. 1ª conclusão: a corrida às armas no espaço parece que seguirá se ampliando. 2ª conclusão: A III Guerra mundial poderá eclodir no espaço – hoje mais que nunca imprescindível a todos os países, a todos os povos, a toda a humanidade.

Controle da Terra a partir do espaço – Yuriy Knutov, militar russo, enfatiza duas vantagens do espaço: 1) O controle efetivo do espaço permite monitorar a situação em qualquer região do mundo; e 2) A implantação de armas em órbita oferece a possibilidade de infligir o máximo de danos em um sem-número de alvos com a máxima rapidez possível. E acrescenta: “Na verdade, os EUA não suspenderam seu trabalho com a SDI. Hoje, vemos alguns resultados desse programa. Os americanos trabalham para criar uma variedade de capacidades, incluindo cinéticas, laser e feixes para eliminar rapidamente alvos no solo e em órbita.” Os EUA não aceitam perder sua liderança no processo de conquista militar do espaço e, naturalmente, se recusam a negociar sua desmilitarização. Contudo, assegura Knutov, a Rússia e a China dispõem de recursos para enfrentar o Pentágono – mesmo que as forças ainda não sejam iguais.

China diz “não” à corrida armamentista espacial – Knutov lembra que, em 23 de junho de 2017, o único satélite russo apelidado de “inspetor” rompeu com a plataforma espacial Cosmos-2519. Este dispositivo, extremamente manobrável, é capaz de inspecionar outros satélites para identificar sua finalidade. O militar russo reconhece que, hoje, “a Rússia e a China estão atrasados em relação aos EUA”, mas se a corrida armamentista no espaço se agravar, “a Rússia tem condições de aguentar o desafio”. A seu ver, a Rússia poderá superar EUA e China, em várias áreas técnicos espaciais. Mas, obviamente, nosso país tenta evitar esse cenário”. Knutov acredita que os EUA tentam atrair a Rússia a uma corrida às armas. Mas, segundo ele, Moscou tem tomado medidas adequadas contra essa corrida, inclusive levantando o debate nos principais órgãos das Nações Unidas sobre a necessidade urgente de desmilitarizar o espaço.

Sua conclusão não poderia ser mais clara e desafiadora: “O espaço deve ser pacífico. A destruição de satélites teria graves efeitos sobre todos nós. Muitas coisas de primeira necessidade hoje dependem deles. Mais cedo ou mais tarde, os EUA e seus aliados serão vistos pela maior parte da comunidade global como países agressores que se opõem à conquista pacífica e conjunta do espaço”.

Cabe destacar a resolução 72/77 da Assembleia Geral das Nações Unidas, de 7 de dezembro de 2017, sobre a “Cooperação Internacional para o uso do espaço exterior com fins pacíficos”. Essa resolução, aprovada por larga maioria de votos, “insta a todos os Estados-Membros [das Nações Unidas], em especial os detentores de importante capacidade espacial, a contribuir ativamente para se alcançar o objetivo de impedir uma corrida armamentista no espaço exterior, como condição indispensável para o fomento à cooperação internacional na exploração e uso do espaço exterior com fins pacíficos”. Votaram contra os EUA e mais três ou quatro países.

Defesa da paz, solução pacífica dos conflitos e cooperação entre os povos para o progresso da humanidade” – Estes são três dos 10 princípios que regem as relações internacionais do Brasil, segundo o Artigo 4º de sua Constituição Federal, promulgada em 5 de outubro de 1988. Legalmente falando, portanto, nosso País já escolheu o seu lado nesta questão de vida ou de morte para a espécie humana.

“Sou muito bom em guerras. Eu amo as guerras, incluindo as armas nucleares.” – inédita declaração de amor de Donald Trump. Que outro presidente na história do mundo ousou expressar publicamente tamanha paixão bélica? (Ver <https://gauchazh.clicrbs.com.br/mundo/ noticia/2016/11/veja-declaracoes-polemicas-do-novo-presidente-dos-eua-donald-trump-8223781. html>)

(*) José Monserrat Filho, Vice-Presidente da Associação Brasileira de Direito Aeronáutico e Espacial (SBDA), ex-Chefe da Assessoria de Cooperação Internacional do Ministério da Ciência e Tecnologia (2007-2011) e da Agência Espacial Brasileira (AEB) (2011-2015), Diretor Honorário do Instituto Internacional de Direito Espacial, e Membro Pleno da Academia Internacional de Astronáutica. Ex-diretor da revista Ciência Hoje e editor do Jornal da Ciência, da SBPC, autor de Política e Direito na Era Espacial – Podemos ser mais justos no Espaço do que na Terra?, Ed. Vieira&Lent, 2017. E-mail: <jose.monserrat.filho@gmail.com>.