Quando o desabastecimento for solucionado, a crise irá permanecer ou nós iremos mudar?

31 de maio de 2018 415

Estamos em crise. Nas conversas de elevador às filas nos caixas de supermercado, nos grupos de WhatsApp às reuniões de associações e coletivos, proliferam as constatações sobre a crise e seus inúmeros sintomas, assim como proliferam as explicações, interpretações, proposições. A partir da perspectiva socioambiental, que é o lugar de onde eu falo, eu também quero dar os meus dois tostões – ou, melhor dizendo, lutar pelos meus vinte centavos.

Faço isso lembrando do que a antropóloga indiana Veena Das fala sobre o Estado e suas margens. Das afirma que é compreendendo o sofrimento social das pessoas em suas vidas cotidianas e em eventos críticos que se entende como funciona o Estado, ou, mais do que isso, entende-se como as sociedades nacionais são feitas das vidas das pessoas, em complexas relações entre o local e o global. Veena Das observa, também, como eventos críticos, enquanto momentos de “quebra do cotidiano”, permitem explicitar as transformações ocorridas nas noções e nas práticas da política contemporânea. Sendo assim, uma crise não é um desvio, um ponto fora da curva, mas, ao contrário, o momento em que se escancara o que nós somos, como vivemos.

Na crise de desabastecimento que estamos vivenciando nesse momento, se escancara a ausência de legitimidade do governo, que nem mesmo cedendo, consegue fazer com que seja obedecido. Se escancara a total desconfiança das pessoas em relação a toda a classe política ao exigir “intervenção militar” – e aqui, me somo aos colegas que identificaram que o “militar” importa menos que o “intervenção”, isto é, que o que as pessoas têm clamado é para uma interdição do sistema política atual, por um agente externo que possa “zerar o jogo” e a partir daí recomeçarmos.

Especialmente, me interessa destacar que nessa crise se escancara a precariedade da economia fóssil como estrutura socioecológica.

O historiador ambiental sueco Andreas Malm, no livro “Fossil Capital”, argumenta pela imbricada relação entre o controle dos combustíveis fósseis e o controle da força de trabalho, sendo justamente esse o nó que sustenta o capitalismo. Discute como a economia fóssil tem o aspecto de uma totalidade, na qual “um certo tipo de dinâmica econômica e uma certa forma de energia estão soldadas”, aparecendo como indistinguíveis entre si e da própria vida, como “business-as-usual”. Mas, continua Malm, “a economia fóssil foi historicamente construída e, desde então, tem sido reproduzida e ampliada, e tudo que foi construído ao longo do tempo pode potencialmente ser destruído (ou escapado)”.

Na crise de desabastecimento que estamos vivendo, a estrutura socioecológica de dependência de combustíveis fósseis está explícita: a política de preços da Petrobrás repercute na mobilidade urbana, no transporte de cargas, na organização política, cada um desses eixos com seus tentaculares efeitos dominó (aulas em escolas e universidades canceladas, alimentação sem verduras e produtos frescos, instabilidade no governo, para citar alguns exemplos dentre os vários possíveis em cada).

A crise escancara, mas não é um desvio: muitas pessoas têm apontado uma relação de afinidade intensiva entre os acontecimentos das últimas semanas com aqueles de junho de 2013. De fato, em meio a todas as diferenças – e talvez a mais politicamente marcante seja a de que em 2013 os protestos tinham como alvo o governo progressista – desenvolvimentista de Dilma/Lula, e agora confrontam a política neoliberal e privatizante de Temer – a estrutura socioecológica em pane é a mesma. A disputa pela mobilidade urbana já estava lá, é claro, mas não apenas. Como afirma a socióloga argentina Maristella Svampa, os governos neoextrativistas que atuaram na primeira década dos anos 2000 na América Latina, ao seguirem o “Consenso de Commodities” como uma maneira de sustentarem suas políticas econômicas e sociais, minimizaram as enormes consequências ambientais e políticas de aprofundarem o lugar latino-americano de “exportador de natureza” (isto é, de gás, petróleo, metais, minerais e produtos agrários).

Se o ciclo de protestos de junho de 2013 não foi pelos conflitos ambientais ocasionados pela contínua expropriação de territórios habitados por comunidades tradicionais, indígenas e quilombolas, causada pelo avanço da soja ou de grandes projetos de infraestrutura, sem dúvida estes conflitos ajudaram a fraturar o interior de movimentos sociais e do pensamento crítico no campo da esquerda, fraturas que seguem expostas na crise atual.

Afinidade intensiva, portanto, entre os protestos de 2013 e os protestos das últimas semanas, porque não se trata de uma continuidade por extensão, não se tratam de pontos que se ligam linearmente, mas por serem movidos por uma potência comum, por serem desdobramentos múltiplos de uma crise socioecológica. Volto a Veena Das, que afirma que a sensação de crise tal qual vivenciada pelas pessoas atua como elemento crucial na reelaboração dos sentidos, das narrativas sobre sujeitos, espaços e acontecimentos. Ao olharmos ao redor, em meio à crise, vemos que as pessoas têm conseguido seguir com a vida cotidiana deixando o carro e andando a pé ou de bicicleta; que enquanto no supermercado não há mais frutas frescas, a pequena feira de agricultores que acontece no bairro continua abastecida. Vemos imagens de aves e porcos sofrendo sem alimentação em caminhões de carga, e nos damos conta de que aves e porcos são transportados centenas de quilômetros em condições precárias ainda antes
do abate. A pergunta que agora nos podemos fazer é: quando o desabastecimento for solucionado, a crise irá permanecer ou nós iremos mudar?

Gosto da afirmação do filósofo francês François Zourabichvili, de que “o possível chega pelo acontecimento, e não o inverso”. Que a irrupção da crise enquanto um acontecimento, que tem sacudido o cotidiano de todas e todos nos últimos dias e que nos tem feito enfrentar o que somos enquanto sociedade, abra um novo campo de possíveis, no qual nossa estrutura socioecológica possa se reconfigurar a partir de bases mais sustentáveis para as pessoas (humanas e não-humanas) que nela vivem.

(*) Bióloga, Doutora em Sociologia. Professora do Departamento de Sociologia, do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Rural, e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul. (lorena.fleury@ufrgs.br)