Proteção ou loucura?

13 de março de 2018 657

Na quarta temporada de Black Mirror, da Netflix, encontrei no episódio 2, dirigido por Jodie Foster e roteirizado por Charlie Brooker, um enredo que propõe às mães boas reflexões. Essa impactante história nos traz, como é a marca registrada do seriado, as angústias humanas aliadas às tecnologias de um futuro imaginado. Dessa vez, o capítulo inicia com a chegada ao mundo de um nenê e, a partir dali, a relação dessa mãe com essa filha.

Muda a cena. A criança pequena fica encantada por um gatinho, e se perde dos olhos da mãe em uma pracinha. A mãe se desespera! Ali vemos as seduções perigosas que o mundo oferece e que o entorno pode ser ameaçador. Nesse instante é fácil identificar-se com aquela que se culpa por ter tirado brevemente os olhos de cima de sua filhinha e tê-la perdido. Por sorte, nada de mal aconteceu e ela é encontrada sã e salva.

A mãe, então, busca na ciência a solução tecnológica para proteger sua filha. Ela recorre a um novo dispositivo que uma empresa de saúde está testando. Trata-se de um chip, inserido no cérebro da criança, que apresenta, através de um tablet, tudo o que ela vê. Assim, a mãe pode seguir os passos de sua filha e sempre saber onde a menina está. A segurança parece completa! As duas estão o tempo todo conectadas pelo monitor. Além disso, o dispositivo permite censurar o conteúdo ao qual a criança tem acesso, borrando as imagens das cenas da realidade que poderiam chocá-la. A menina não escuta nem vê com clareza as situações agressivas ou de cunho sexual, pois se considera que elas prejudicariam seu espaço protegido. Cria-se, assim, um mundo manipulado.

Fica evidente que a mãe se preocupa com o bem estar da criança. E nós, telespectadores, num primeiro momento vemos com alívio essa proteção que a tecnologia permite. Todavia, aos poucos, a história nos apresenta os problemas que um mundo protegido e censurado cria.

Não há privacidade. São sempre os olhos de outra pessoa que decidem o que você vê e o que você não vê; um adulto que sabe sobre você todo o tempo. Como criar o espaço da intimidade numa condição dessas? Como lidar com sua própria sexualidade e agressividade, se essas são consideradas impróprias e são censuradas? Freud nos falou das pulsões agressivas e sexuais que nos constituem como seres humanos. Querer imaginar um mundo puro, sem agressividade, sem seduções e perdições é desconsiderar o material do qual somos feitos.

É fácil reconhecer-se no papel da mãe que tem medo da violência que pode ameaçar sua filha. Todavia, apesar do álibi do mundo violento, o episódio deixa claro que a mãe não quer perder a filha; não quer se separar da sua menininha; quer mantê-la próxima e protegida. E, aos poucos, nos damos conta do perigo inerente dessa forma de cuidado.

A possibilidade de nos protegermos frente às ameaças que o mundo coloca vai depender do que nos é transmitido e de nossas experiências. Vamos aprendendo a codificar e decodificar palavras, olhares, cheiros, toques, sentimentos, nossos e dos outros. Somos marcados e imprimimos nossa marca nessas relações. E tudo isso não tem como ser feito por ninguém menos que nós mesmos, no laço com os outros.

Inicialmente somos acompanhados por nossos cuidadores, e estes precisam saber da importância de escutar e entender nossos choros e demandas de cuidados, assim como nos fazer suportar o tempo de suas ausências e a existência de nossas dores. Talvez o que o episódio nos mostre é que, travestido das melhores intenções de proteção, o excesso de cuidado pode ser perigoso. Infelizmente, a medida de tudo isso não tem como estar escrita em nenhum manual da maternidade. É artesanal, é arte, é singular. A vida implica riscos, e não temos como vivê-la plenamente sem entender isso.

A mãe, mesmo cuidadora, precisa conseguir desviar o seu olhar para outros interesses, de modo que a filha, nesse espaço, construa um mundo privado dela. Essa condição é essencial para que a menina consiga constituir-se como indivíduo. Nesse processo, mãe e filha vão construir realidades diversas, operando uma separação que é constitutiva de cada novo ser. Claro que considero que, com uma boa dose de amor, é possível estarem próximas ao longo de suas próprias trajetórias.

(*) Maria Ângela Bulhões, psicanalista membro da APPOA, psicóloga do ambulatório do Hospital São Pedro.