OSSO DURO DE ROER

23 de outubro de 2017 1001

  – “Todo mundo vê as pingas que eu tomo, mas, não vê os tombos que eu levo”!

            – O senhor bebe?

            Sem notar o chavão, porque doidinha para saber algo mais que criticar na vida alheia, assim ela respondeu à frase do vizinho a quem inquiria a respeito de sua bondade para com os bichos abandonados que vagam pelas ruas do bairro.

            – Tem muita criança abandonada por aí; o ser humano é a maior criatura, é nele que o senhor tem que pensar, viu.

            Com que tipo de criatura será que aquela criatura pensava falar?

            Com sua abordagem de ser superior, mal ela imagina que o homem com quem falava, não obstante sua indisfarçável simplicidade, havia acabado de chegar da casa de outro alguém, igualmente pobre, cujo companheiro acabara de fugir levando todos os pertences da casa, de eletrodomésticos a itens da despensa.

            Diferentemente dela, que escolhera gastar seu tempo instigando o desprezo pelos seres inferiores, ele gastava o seu fazendo o bem, partilhando o pouco que tem. O tipo de coisa que não se sai divulgando por aí.

            A infelicidade é que os animais estão à solta, expostos à sorte e à crueldade humana, e que ajudá-los dá na vista.

            Mas, para não cair em falso testemunho também, não é? pensemos que, naturalmente, ela pensa fazer o que é bom.

            Como não, se quando não está de portão em portão ou ao telefone nesse objetivo, ela pensa estar louvando o Criador e Suas palavras, de cujo conteúdo ela pensa fazer a leitura mais fiel?

            Isso me remeteu a um filme. Três pessoas oravam tendo em vista uma eleição: uma, que não medira esforços durante a campanha, não mesmo!, sugeria vencer, haja vista a inferioridade dos demais; a segunda propunha um acordo: passaria a rezar caso se sagrasse campeã; já o terceiro pedia iluminação para cada um dos que concorriam, agradecia pela oportunidade e aproveitava para agradecimentos extras, tipo o corpo sarado com que tinha sido abençoado.

            Filme bobo. Durante ele, porém, pude descansar os pés depois da lida diária etc. Descansei de coisas que ninguém vê, que a ninguém dizem respeito, sobretudo, aos que ficam ali e aqui, ora debruçados no livro da vida ora falando da vida dos outros sem saber da missa a metade!

            Deus é uma questão de caráter.

 

 

 

 

Valquíria Gesqui Malagoli, escritora e poetisa, vmalagoli@uol.com.br / www.valquiriamalagoli.com.br