"O TREM DE LÊNIN" O MOSTRA COMO UM PERSONAGEM HISTÓRICO COM INERENTES CONTRADIÇÕES, NÃO COMO UMA ESTÁTUA
Ben Kingsley ora parece mesmo Lenin...
Foi uma grata surpresa encontrar disponibilizado no Youtube um filme equilibrado sobre episódio revolucionário e com a assinatura de um cineasta competente.
Infelizmente, são raros. A maioria é de obras menores, reverentes em demasia, apologéticas e louvaminhas, como se grandes homens não fossem contraditórios tais quais todos somos, embora tendo momentos de intenso brilho, quando chegam a fazer a diferença para que os acontecimentos históricos se encaminhem numa ou noutra direção.
Mas, Damiano Damiani não era um diretor e roteirista qualquer. Depois de mais de uma década criando argumentos ou adaptando, dos livros para as telas, criações alheias, estreou na direção em 1960, incursionando pelas comédias à italiana, e depois chamou a atenção da crítica com um drama inspirado em Alberto Moravia (Vidas Vazias, 1963).
Finalmente, encontrou seu nicho com Gringo (1967) e O dia da coruja (1968): westerns e policiais na linha da contestação política, sintonizados com aquele momento em que a juventude ia às ruas protestar e erguer barricadas contra a desumanidade capitalista e o desencanto que lhe causava o autoritário e burocratizado socialismo real.
Tal fase, que vai até 1985, deixou como saldo filmes dignos e desmistificadores, que eram compreensíveis para, e apreciados por, públicos menos sofisticados que os dos chamados filmes de arte, curtidos pela intelectualidade; mas, algo repetitivos, tipo viu um, viu todos.
...ora está mais para Mahatma Ulianov.
Dois foram de qualidade superior e mereceriam ser mais conhecidos pelas novas gerações: Confissões de um comissário ao procurador-geral da república (1971) e Só resta esquecer (a.k.a. Todos estamos em liberdade condicional, 1971).
Quando os ventos de mudança não mais sopravam na Europa, Damiani fez alguns filmes relacionados a episódios históricos, inclusive o injustamente ignorado A investigação (1987, sobre a faina de um romano enviado pelo imperador Tibério para descobrir o cadáver de Jesus Cristo e, assim, desmentir sua ressurreição.
Na mesma linha está o filme para ver no blog a que os leitores podem assistir, legendado, nas janelinhas abaixo: as duas parte da minissérie O trem de Lenin (1988), totalizando 206 minutos.
Mostra a célebre viagem de Lenin para voltar em segurança do seu exílio suíço para a Rússia em 1917, depois que o czar Nicolau II abdicou como consequência dos protestos populares iniciados pelos operários de São Petersburgo e que se espalharam pelo país (a chamada revolução de fevereiro, que levou ao poder um governo provisório formado por representantes da nobreza e da burguesia, ao lado de socialistas moderados).
Face à dificuldade para chegar ao seu país em meio às batalhas da 1ª Guerra Mundial, Lenin (Ben Kingsley, geralmente correto, mas às vezes com cacoetes remanescentes do personagem que o celebrizou, Gandhi) aceita uma proposta do aventureiro Parvus (Timothy West), um gênio sem caráter que inspirara Trotsky na criação da teoria da revolução permanente, depois se afastara dos revolucionários russos e fora utilizar seus talentos para enriquecer na vida.
Lênin correu riscos e fez a revolução. Martov refugou e foi para a lata de lixo da História
Parvus convencera o governo da Alemanha a facilitar a passagem de Lenin por seu território, para que, de novo na Rússia, ele entrasse em choque com o governo provisório, enfraquecendo-o.
A suposição germânica era a de que tal divisão acabasse levando os russos a firmarem uma paz em separado, liberando os alemães para utilizarem seus efetivos no front ocidental.
Astuto, Lenin avalia que era fundamental estar presente no seu país o quanto antes, pois se abria uma janela revolucionária capaz de propiciar a concretização dos ideais que vinham sendo a razão maior de sua existência havia um quarto de século. Mas, ser-lhe-ia inconveniente retornar como um personagem que os adversários poderiam qualificar de espião alemão.
Então, negociou com os ditos cujos a inclusão de outros exilados na viagem, exatamente para não parecer o trem do Lênin e sim o trem dos russos. Oferecendo um lugar até para adversários como os mencheviques (Martov interpretado por Wolfgang Gasser, esperou para ver se a aventura não era uma cilada, tendo depois de correr atrás do prejuízo, obrigado a negociar outra viagem para ele e os seus).
O trem acabou partindo com 32 passageiros especiais, que viajaram separados dos demais, mas não como peste confinada num vagão lacrado, conforme ironizou Winston Churchill.
É fascinante ver:
A bela feminista, a lenda viva e a esposa condescendente
— os dotes de grande estrategista e orador de Lenin, que consegue superar brilhantemente a maioria das situações delicadas para o propósito do grupo, não hesitando em decepcionar seus admiradores em estações pelas quais o trem passa, por temer que suas aclamações deem pretexto para os alemães interromperem a viagem;
— seu desapego pessoal, a ponto de ser obrigado pelos companheiros a tomar banho de loja para não chegar a Petersburgo parecendo um mendigo e, pior, sofrendo com ataques de uma doença que ocultava penosamente porque lançaria uma nuvem negra sobre seu futuro político (há dúvidas sobre se seria ou não uma sífilis mal curada, mas a versão oficial acabou sendo a de que ele decaiu rapidamente nos dois anos finais por causa de uma aterosclerose progressiva);
— sua relação complicada com Inessa Armand, revolucionária, feminista, formada em economia e que escrevia sobre literatura (Dominique Sanda), uma mulher à frente do seu tempo, que tudo indica ter sido mesmo amante de Lênin, embora isto haja sido provavelmente deletado das biografias da era stalinista para não admitir-se a existência de uma nuance humana no revolucionário perfeito; e
— a resignação com que Zinoviev (Paolo Bonacelli) e a esposa Nadia Krupskaya (Leslie Caron) aceitam tudo que parta do grande homem, mesmo quando tal subserviência lhes é constrangedora, exatamente como age hoje o séquito do Lula no PT...
Gente de verdade é assim, tem necessidades humanas, não está fazendo História o tempo todo. Estátuas imponentes só servem para enfeitar (ou enfear) as praças públicas. (por Celso Lungaretti)
Postado por celsolungaretti
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