O QUE OS OUTROS JORNALISTAS NÃO ESCREVERAM SOBRE O ZAGALLO

8 de janeiro de 2024 197

Para Médici, seria uma saia justa dividir os holofotes
do tri com um comunista. Os cartolas o atenderam...

É irritante a tendência bem brasileira de se passar pano nas facetas menos lisonjeiras de um famoso quando ele morre, postura criticável até mesmo num cidadão comum e simplesmente inaceitável em jornalistas. 

Estes últimos, em especial os da imprensa escrita, deveriam priorizar a verdade, ao invés de vergarem-se às conveniências, fazendo coro às coberturas quase sempre louvaminhas e apologéticas dos meios eletrônicos.

Zagallo foi mais coadjuvante do que protagonista durante a vida inteira, então não havia motivo para estender-me agora sobre ele. Mas, faço questão de lembrar o que tantos outros omitiram:

— como campeão mundial em 1958 e 1962, não passava de um carregador de piano para os jogadores decisivos brilharem. Só atuou porque Vicente Feola e Aymoré Moreira, respectivamente, optaram por um novo esquema tático (o 4-3-3), com Zagallo recuando para auxiliar na marcação e encorpar o meio-de-campo. Se a opção fosse pelo ponta-esquerda convencional do 4-2-4, Pepe teria ficado com a vaga, pois, como atacante, era imensamente superior;

— dirigido por Saldanha, dito João Sem Medo, o escrete deitou e rolou nas eliminatórias do Mundial de 1970, com as então chamadas feras do Saldanha goleando impiedosamente os adversários. Mas, o ditador Médici não queria que a seleção o tivesse como técnico nos gramados do México, por causa de sua notória proximidade com o PCB. Então, os solícitos cartolas armaram uma arapuca para descartá-lo, incitando o técnico flamenguista Yustrich a dar repulsiva declaração à imprensa, na qual fez referência a uma suposta infidelidade da esposa do Saldanha. Este saiu atrás do ofensor para tirar satisfações, dando pretexto para seu afastamento. Quem foi o técnico politicamente confiável que acabou herdando o cargo? O Zagallo.

Quando Médici pediu Dadá Maravilha no escrete, Saldanha
retrucou: "Ele escala o Ministério, eu escalo a seleção". Já
Zagallo obedeceu ao ditador, mas deixou Dadá na reserva

— em situações como essa, a cartolagem só derruba um treinador quando já tem outro engatilhado e concorde para assumir a vaga. Embora Yustrich houvesse sido levado a crer que, feito o serviço sujo, seria ele o agraciado, seu autoritarismo no trato com os jogadores era tão acentuado que lhe acarretava forte rejeição. A opção por um treinador mais palatável era pra lá de previsível e isto já deveria estar nos planos dos golpistas;

— a seleção tricampeã mundial foi a que Saldanha moldou nas eliminatórias, quando reergueu a confiança dos brasileiros (abalada pelo fiasco de 1966). A grande novidade foi a formação do chamado quadrado mágico (Gerson, Tostão, Pelé e Rivellino), mas ela não se deveu a Zagallo, que preferia Edu como ponta-esquerda. Os líderes do elenco, contudo, forçaram a escalação do jovem da patada atômica  e o Brasil fez sua Copa mais memorável, dentre todas as que venceu;

— em 1994 Zagallo, qualquer que fosse seu rótulo oficial, não passou do principal auxiliar de Carlos Alberto Parreira e é sabido que sua influência foi grande para que o técnico adotasse posturas excessivamente cautelosas, culminando no horroroso espetáculo que foi a final contra a Itália: 0x0 durante 120 minutos, mais a pífia vitória nos pênaltis; e

— jamais pode ser esquecida a infame expulsão do grande goleiro Barbosa, quando este, já septuagenário, tentou visitar a concentração do escrete em 1994. 

Ele havia sido injustamente estigmatizado e feito bode expiatório do maracanazo  (inclusive por ser afrodescendente, tanto que disseminou-se a partir daí o preconceito de que goleiros negros sempre falhariam nos momentos decisivos). 

"Alegria do povo", Garricha encantou o mundo com
a pureza do seu amor pelo futebol. Não o merecemos.

O pobre Barbosa, após tanto sofrer por causa de uma única decisão errada (adiantou-se para interceptar o provável cruzamento do ponta Ghighia, pois assim nascera o tento de empate dos uruguaios, mas o atacante surpreendeu-o ao arrematar para o gol), ainda foi exposto e humilhado, 44 anos depois (!), como pé frio

Os jornalistas que cobriam o dia a dia em Teresópolis garantiram que tal atitude, raríssima num indivíduo cordial como Parreira, teve como forte instigador o Zagallo, que era, sabidamente, um homem supersticioso ao extremo.

É óbvio que Zagallo também teve lá seus méritos. Mas eles já foram desmedidamente exaltados pelos meus colegas, a ponto de um deles pretender que haja sido o segundo jogador mais importante da seleção canarinha em todos os tempos, acima até de Garrincha,  que carregou seu escrete nas costas em 1962 (feito só igualado pelo Maradona em 1986).

Que enorme disparate! Quanta ingratidão com o genial Mané!

Enfim, faltava mostrar este outro lado do endeusado da vez, para restabelecer o equilíbrio que os textos jornalísticos, mesmo os necrológios, sempre deveriam ter. (por Celso Lungaretti)

Fonte: CELSO LUNGARETTI
A VISÃO DEMOCRÁTICA (POR CELSO LUNGARETTI )