NO TEMPO DA DELICADEZA

Dia das crianças e eu fico me perguntando em que momento o tempo me colocou na posição de quem presenteia e não na de quem recebe presentes. Tudo passou rápido demais e sou capaz de jurar que era ontem que eu estava pensando sobre o que pediria no próximo dia das crianças. O tempo é mesmo um pândego, vivendo de pregar peças nos desavisados e ainda mais nos atentos, talvez como advertência de que nada é previsível.
Nessas minhas décadas de vida, diante de tantas monstruosidades, tenho me decepcionado com a humanidade. São condutas tão assombrosas perpetradas por pessoas capazes das crueldades e indiferenças quase infinitas, que fica difícil achar que os seres humanos são melhores do que os animais.
Há, contudo, um momento na linha da vida das pessoas nas quais elas são de fato boas, ou ao menos a imensa maioria delas. A infância é o esplendor da vida humana. Não é o ser humano bruto, mas o lapidado. Da forma como vejo, o caminho é o inverso, pois vamos ficando brutos, grosseiros, repletos de cascas supostamente morais na medida em que os anos se acumulam sobre nossos ombros.
O Dia das Crianças sempre me lembra disso, a propósito. Esqueço do lado comercial da coisa, do lucro das lojas de brinquedos, para me fixar na ideia de que as crianças representam, de fato, a esperança de dias melhores. Creio que se descobrirmos em que momento e de que forma deixamos de ser o melhor de nós mesmos, quiçá tenhamos futuro digno de sonhos.
Adoro conversar com meus sobrinhos, de dez e cinco anos, pois a lógica deles de longe supera o esforço mental de qualquer filósofo. Tudo é simples, inocente, capaz de consertar feridas, dores e desilusões. Aliás, troco muita conversa mole de gente chata, arrogante e mal-educada por um bate-papo divertido com a criançada.
É preciso dizer que nós, adultos, podemos preservar em nós um oásis de felicidade pura e ingênua, um oásis de delicadeza, sempre que não deixamos morrer a criança que há em nossos corações e almas. Acredito que somos como crianças crescidas, esquecidas em algum recôndito, em algum cantinho quase inacessível do que nos tornamos. Basta, entretanto, um chamado, um respiro mais profundo e a maior parte de nós é capaz de emergir, de ver o mundo de modo menos seco, direto e sem graça.
Para isso, bastam pequenos gestos, como colocar os pés no chão e andar descalço sentindo a grama, a terra, a areia do mar. Uma conexão direta com a natureza sempre invoca a criança, o sagrado em nós. Da mesma forma, brincar com uma criança, sorrir do que é simples, sentar no chão para montar um quebra-cabeça, jogar bola entre risos, cantar músicas bobas a plenos pulmões e tudo o mais que nos retire da proteção ilusória que a vida adulta nos confere, encarcerando-nos aos poucos.
Quando vejo idosos de sorriso franco, brincalhões, que se permitem existir a despeito do número que ostentam em seus documentos de identidade, de cara busco imaginar a criança que devem ter sido. De tão fortes, jamais se deixaram soterrar, vivendo à tona, oscilando, em equilíbrio, entre o que precisa ser sério e o que pode ser divertido, leve, honesto e feliz.
Tenho comigo o propósito de não me permitir ser uma velha. Não no sentido de abandonar a graça dos meus melhores dias, nos quais eu olhava o mundo com os olhos da novidade, aprendiz de tudo e de todos. Em verdade, a despeito do tempo que começa aos pouco me cobrar seus préstimos, ainda me sinto assim, uma criança que cresceu à revelia de sua vontade, mas que assumiu o papel que lhe foi dado, brincando de pique-esconde, aparecendo sempre que tem oportunidade.
Minha convidada eterna, quero-a comigo no momento em que me despedir desse mundo, segurando minha mão e cochichando em meus ouvidos que tudo vai passar logo, que só estamos indo ver aqueles que amamos e que foram antes de nós. Que Deus conserve, em cada um de nós, a criança que nos pode redimir desse mundo.
CINTHYA NUNES VIEIRA DA SILVA - Advogada na Silva Nunes Advogados Associados, professora universitária, membro da Academia Linense de Letras e cronista. São Paulo. - cinthyanvs@gmail.com