HÁ 50 ANOS, O TRI FOI MARCADO POR UM FUTEBOL QUE AINDA NOS DESLUMBRA E A DITADURA QUE ATÉ HOJE NOS HORRORIZA

12 de junho de 2020 503
"Pai! Afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue
(...) De que me vale
Ser filho da santa
Melhor seria
Ser filho da outra
Outra realidade
Menos morta
Tanta mentira
Tanta força bruta"

(Chico Buarque/Gilberto Gil)
Aos brasileiros, que desde 2002 não comemoramos a conquista de uma Copa do Mundo, só nos resta consolarmo-nos com as lembranças do Mundial Fifa de 1970, cujo cinquentenário transcorre atualmente. 

A partida disputada no dia 11 de junho (exatos 50 anos atrás, portanto) foi a das quartas-de-final, contra o Peru, que fez então sua melhor campanha nas Copas até hoje mas, mesmo jogando como nunca, perdeu como sempre... 

Não é, contudo, só a consagração nos gramados do México que marcou o ano de 1970 no Brasil, mas também o ápice do terrorismo de Estado, com as torturas e assassinatos desembestados dos que ousamos resistir ao regime dos generais. 

Daí, na série que escrevi sobre nossa participação nos mundiais, eu não ter usado como epígrafe do capítulo dedicado ao tri alguns versos de Pra Frente Brasil (clique no título para ouvi-la), a musiquinha que mais ficou associada àquele triunfo (assim como A taça do mundo é nossa em 1958 e Frevo do Bi em 1962), mas sim os de Cálice. O motivo é óbvio. 
...habituado que era a fazer demagogia no Maracanã.

Eu até que gostaria de conseguir separar o maravilhoso do horroroso, mas o que ia pra frente naquele Brasil não eram exatamente "noventa milhões em ação/ "todos ligados na mesma emoção". E ligados estávamos, isto sim, às maquininhas de aplicar choques elétricos...
 

Atravessei a Copa como preso político no DOI-Codi/RJ, tomando conhecimento dos gols canarinhos pela gritaria no quartel e recompondo as forças durante a pausa para respirar que as partidas da Seleção nos proporcionavam – pois os torturadores preferiam assistir às belas proezas nos estádios do que protagonizar a rude barbárie nos porões.

Nada impedia que, poucas horas depois, estivéssemos recebendo choques e pancadas, pendurados no pau-de-arara. A gritaria de júbilo cedia lugar aos urros desesperados.

Não, naqueles dias podia até parecer que "todo o Brasil deu a mão", mas havia um abismo intransponível entre as mãos que golpeavam e as mãos que acudiam.

Os que nos diziam comemorem! eram os mesmos que berravam cale-se!ame-o ou deixe-o! e comunista bom é comunista morto. O vinho sorvido nesse cálice era fel para nós.

E, para os que estranharem esta intromissão da detestável política num espaço dedicado ao encantamento do futebol, vale lembrarmos quão determinante ela foi no momento dos acontecimentos.
 
JOÃO SEM MEDO, AS
 FERAS E O OGRO
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Depois do acachapante fiasco no Mundial da Inglaterra, quando a convocação de um número excessivo de jogadores e o tortuoso ritual dos cortes minaram a união do elenco, o Brasil decidiu definir desde o início um time-base.

Foi como agiu João Saldanha, jornalista e técnico com notórias afinidades com o Partido Comunista Brasileiro, um homem carismático e de personalidade fortíssima (o apelido de João Sem Medo era dos mais merecidos).

Montou o escrete para as eliminatórias com maioria de jogadores do Santos e Botafogo, nossas duas melhores equipes da época. E, para reerguer o combalido moral brasileiro, nada como o rótulo inspirado que o escritor e colunista Nelson Rodrigues criou: as feras do Saldanha

A ideia era que nossos jogadores não deveriam temer nem respeitar ninguém, entrando em campo para atropelar os adversários. 

E foi o que aconteceu nas eliminatórias: o Brasil passou como um trator sobre Colômbia, Paraguai e Venezuela, vencendo os seis jogos, com direito a goleadas. Foram 23 gols marcados e apenas dois sofridos.

Aí, uma conspiração esportivo-militar derrubou o técnico heroico; pesaram fatores como a independência que Saldanha assumia com relação aos repulsivos cartolas e sua relutância em colaborar com o marketing do ditador de plantão. 
 
Eis uma boa síntese da epopéia brasileira nos gramados do México
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Emilio Garrastazu Médici, o sanguinário, era dado à demagogia futebolística. Ia, p. ex., assistir aos clássicos no Maracanã com um rádio de pilha colado ao ouvido... e batalhões de seguranças ao redor!

Tentando suavizar sua imagem de ogro, Médici sugeriu a entrega de uma camisa de titular ao folclórico atacante Dadá Maravilha, ao que o altaneiro Saldanha respondeu:
"Quem escala a seleção sou eu, quando o presidente escalou o seu ministério ele não pediu a minha opinião".
Yustrich amarelou
Ficou, claro, com a cabeça a prêmio. Os cartolas açularam então contra ele um técnico grosseiro e metido a valentão, que estava vivendo boa fase à frente do Flamengo: Dorival Knipel, o Yustrich.

Com a promessa de que sucederia Saldanha se o derrubasse, Yustrich desandou a atacá-lo de todas as formas, sem sucesso.

Até que levou a coisa para o lado pessoal, atingindo a honra do João, que provou ser mesmo sem medo: apanhou um revólver e foi atrás do difamador em pleno estádio do Flamengo.

Yustrich, o falso ferrabrás, fugiu pulando a cerca, apesar de obeso. Cena ridícula.

E os cartolas, a pretexto de descontrole emocional, demitiram Saldanha, substituindo-o pelo dócil Zagallo.
QUADRADO MÁGICO: BENDITO ACASO!
 
Tão dócil que os líderes do elenco lhe impuseram a escalação de Rivellino, o reizinho do Corinthians. Zagallo preferia Edu, do Santos, numa armação convencional de 4-2-4.
Líderes do escrete exigiram escalação de Rivellino

Assim, porque ninguém estava realmente aprovando na ponta-esquerda, surgiu, meio por acaso, a grande inovação tática da Copa de 1970: o  quadrado mágico, formado por Gerson, Pelé, Tostão e Rivellino, que não guardavam posições fixas, deslocando-se de acordo com o desenrolar de cada ataque. 

[Na Copa seguinte, o carrossel holandês ampliaria tal rotação, estendendo-a para os demais compartimentos do time.]

Para completar, ficava mais à frente Jairzinho, goleador hábil e oportunista, aproveitando muito bem as assistências dos craques.

Na estréia contra a Tchecoslovaquia, poucos brasileiros viram pela primeira vez uma partida de Copa do Mundo sendo transmitida ao vivo pela TV. A grande maioria ainda era em preto-e-branco, pois raros tinham poder aquisitivo para adquirir os recém-lançados televisores coloridos.
Petras: depois do gol, o sinal de cruz.

Petras abriu o placar e surpreendeu o mundo ao fazer o sinal da cruz (ué, comunistas também são cristãos?! Eles não comem criancinha viva?).

Uma bomba de Rivellino, cobrando falta da meia-lua, restabeleceu a ordem natural das coisas. E o primeiro tempo ainda teve a tentativa de Pelé de encobrir o goleiro com um chute do meio de campo  um dos grandes gols que não aconteceram da história do futebol.

No segundo, só deu Brasil. Belos tentos de Pelé e Jairzinho (2) garantiram a goleada por 4x1, destacando-se os longos e perfeitos lançamentos de longa distância que alcançavam atacantes com pouca marcação.

A partida seguinte foi a batalha dos mais recentes campeões: Brasil (1958 e 1962) contra Inglaterra (1966).

No tira-teima entre os dois últimos campeões, deu Brasil.
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Jogo equilibrado, disputadíssimo, no qual o grande Banks fez defesa antológica, numa cabeçada fulminante de Pelé; em que até nosso mediano goleiro Felix, quem diria, andou salvando a pátria; no qual Astle perdeu chance incrível após falha de Everaldo.

O único gol foi uma pintura: Tostão recebe pela ponta-esquerda, enrola-se com três adversários e, já caindo, consegue passar para Pelé, que talvez marcasse mas, com muitos ingleses à frente, preferiu colocar Jairzinho cara a cara com Banks. Caixa.
 
Defesa antológica de Banks

Vaga garantida, a partida com a Romênia virou amistoso de luxo. 3x2, com falhas de nossa defesa e gols de Pelé (2) e Jairzinho.

Nas quartas-de-final, a tradição prevaleceu. O Peru, treinado pelo nosso Didi, até que surpreendeu no ataque, comprovando a fragilidade da zaga brasileira (o craque Carlos Alberto; o bom Piazza, sacrificado por estar fora de sua posição; e os limitados Brito e Everaldo).

Em compensação, os zagueiros peruanos levaram o previsível o esperado baile. 4x2, com gols de Tostão (2), Rivellino e Jairzinho.
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DUELOS DE GIGANTES
 
O outro rival sul-americano foi bem mais difícil. O Uruguai, campeão de 1930 e 1950, vendeu caro a derrota na semifinal.

A partida ficou ainda mais complicada a partir de uma falha grotesca de Felix, que aparentemente fez golpe de vista numa bola que poderia ter agarrado com certa facilidade. 0x1.

Quando o primeiro tempo já terminava, Clodoaldo surgiu como elemento-surpresa para fazer um gol providencial. 1x1.

O Uruguai estava atravessado na garganta dos brasileiros desde 1950
 
Na segunda fase, o sofrimento durou 30 minutos, até Tostão servir Jairzinho num contra-ataque. Superando um adversário na corrida, o furacão da Copa desempatou.
 
Os uruguaios foram para cima e Felix se redimiu da bobeira do 1º tempo, fazendo defesas cruciais.

Pelé novamente deixa o mundo extasiado com um gol que não aconteceu: aplica desconcertante drible de corpo no goleiraço Mazurkiewicz e chuta raspando a trave.
Foi a primeira vez que vencemos todas as partidas

No finzinho, a  patada atômica  de Rivellino funciona de novo, para dar números mais categóricos à vitória suada: 3x1.

Veio então o tira-teima entre duas seleções bicampeãs: Brasil e Itália (1934 e 1938). Quem vencesse, levaria a Taça Jules Rimet definitivamente para casa.

O Brasil jogou completo: Félix; Carlos Alberto, Brito, Piazza e Everaldo; Clodoaldo e Gérson; Jairzinho, Tostão, Pelé e Rivellino.

A superioridade brasileira foi marcante, contra uma Itália que, tecnicamente bem inferior, ainda se desgastara demais para despachar a Alemanha Ocidental na outra semifinal, decidida somente na prorrogação (4x3).

Centro perfeito de Rivellino para a cabeçada de Pelé. 1x0.

A Itália empata após saída atabalhoada de Felix, que foi disputar a bola na intermediária. 1x1.
Eram duas seleções bicampeãs decidindo qual se tornaria tri 
 
Gerson, o canhotinha de ouro, recebe a bola num corta-luz e desfere chute perfeito da meia-esquerda, aos 21 minutos do 2º tempo. 2x1.

A cansada Itália se entrega de vez quando, logo em seguida, Gerson lança a bola do meio-de-campo e Pelé, na área, apara de cabeça para Jairzinho marcar. 3x1.

O resto foi festa, olé e um gol apropriadamente qualificado de orgástico  pelo Pasquim: Pelé encosta para Carlos Alberto, que vinha na corrida e fez exatamente o que já se desenhara na mente de todos os brasileiros, desferindo um potente chute cruzado que estufou as redes italianas.
O único Mundial conquistado pelo Brasil sob regime ditatorial seria o mais instrumentalizado politicamente de todos os cinco. Ajudou a vender a ilusão de um deslanche econômico, logo desfeita pelos choques do petróleo; e a consolidar uma ditadura sanguinária, que escreveu página vergonhosa de nossa História.

Mas, o que ficou mesmo na memória popular foi a magnífica campanha de nossos craques, que venceram todas as partidas, dando-se ao luxo de sobrepujar, de forma categórica, três das outras seleções campeãs mundiais. 

Então, independentemente dos trastes que pegaram carona nos seus feitos esportivos, é dos jogadores e só dos jogadores que nos lembramos... com muito orgulho! (por Celso Lungaretti)
 
A VISÃO DEMOCRÁTICA (POR CELSO LUNGARETTI )