Fé e arte, filosofia e ciência

8 de outubro de 2019 363

 Já foi observado que a religião é irmã gêmea da arte, por ser filha da mesma mãe, a fantasia humana, que tem a função de suprir a pobreza da realidade. Desde que a espécie animal se tornou bípede, olhando para frente e para o alto, começou a indagar sobre o  mundo  ao seu redor. O desenvolvimento da atividade cerebral levou o homem a imaginar, com base nas aparências,  a Terra plana e fixa ao centro do Universo, iluminada pelo Sol de dia e por outros astros de noite. O Céu seria povoado por várias divindades, cada qual representando atividades e sentimentos humanos. Assim, na mitologia greco-romana, conforme idealizados nos poemas épicos de Homero ("Ilíada" e "Odisséia"), Vênus e seu filho Eros simbolizam a atração sexual, Marte a atividade bélica, entre outra divindades, todas  subordinadas ao Pai Júpiter, correspondente ao grego Zeus. Esses mitos, frutos da fantasia popular, inspiraram os autores das  obras de arte que a cultura greco-romana nos deixou, no tocante poesia, teatro, pintura, escultura, arquitetura, música. A civilização ocidental, porém, além do paganismo, se beneficiou do cruzamento com outras religiões: judaísmo, cristianismo, islamismo. Talvez a obra que melhor expressa a simbiose entre arte e religião seja o imortal poema de Dante Alighieri "A Divina Comédia", que condensou em três cânticos (Inferno, Purgatório e Paraíso) a doutrina católica da época medieval européia.

            Ao longo da história da humanidade, pelo avanço da filosofia e da ciência, foram surgindo espíritos críticos que começaram a contestar o que estava escrito em livros considerados sagrados. A palavra de profetas e sacerdotes foi posta em dúvida face à evolução do raciocínio lógico e de verdades existenciais, confirmadas pelos fatos, contra os quais não deveria haver argumentos. Mas a reação dos conservadores sempre foi e continua sendo cruel. Sócrates, cidadão ateniense do IV séc. a.C., o pai da filosofia, aquele que nos ensinou a pensar com nossa própria cabeça, foi condenado a tomar veneno pela descrença na existência de deuses. Ele nos deixou o maior legado de humildade humana: "a única coisa que eu sei é de não saber nada". Já na Renascença italiana, Galileu Galilei, considerado o maior cientista de todos os tempos, falecido em 1642, foi condenado à masmorra pelo Santo Ofício de Roma, acusado de sustentar o heliocentrismo, a teoria que tentava suplantar o terraplanismo, colocando o sol no centro do universo.

            Nem consigo imaginar qual será a reação dos conservadores perante o extraordinário avanço da física quântica que nos demonstra que o movimento cósmico não é linear, de baixo para cima, mas circular, não existindo inferior e superior, natural e sobrenatural. Todos os seres, animados e inanimados, rodam de cabeça para baixo, a uma velocidade superior à da luz, envolvidos pelas ondas gravitacionais, não existindo separação entre espaço e tempo, espírito e matéria. Simplesmente, não há criação, mas eterna transformação, confirmando o adágio latino "nihil ex nihilo" (nada vem do nada), reformulado pelo químico francês Lavoisier: "nada se cria, nada se destrói, tudo se transforma". A neurociência está demonstrando que o que consideramos alma, espírito ou mente é apenas a conseqüência do funcionamento do cérebro, o nosso órgão que nos faz sentir e pensar. O espírito, conforme a ciência, não existe separadamente do corpo e com este evolui. Minha alma de agora senil, não é a mesma de quando era infantil. Portanto, se muda com o tempo, não pode ser de origem divina. Mas o Estado tem que garantir a liberdade de qualquer crença religiosa, desde que seus preconceitos não prejudiquem cidadãos de outra fé ou ateus. A fantasia da religião, embora seja um forte recurso de auto-ajuda, não pode prevalecer sobre a verdade do raciocínio lógico, do fato histórico, da descoberta científica.                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                            

 

 

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Salvatore D' Onofrio
Dr. pela USP e Professor Titular pela UNESP
Autor do Dicionário de Cultura Básica (Publit)
Literatura Ocidental e Forma e Sentido do Texto Literário (Ática)
Pensar é preciso e Pesquisando (Editorama)
www.salvatoredonofrio.com.br
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